O cozido à portuguesa estava delicioso. A Dona Leonor é deveras uma cozinheira sensacional. Tento ajudá-la a arrumar as coisas na cozinha, depois do almoço, mas ela não me permite.
- A minha avó é sempre assim, deixa lá. - explica Mateus. - A cozinha é dela e só lá deixa entrar alguém quando é para comermos o que cozinha...
Eu sorrio face ao comentário, e ele guia-me até à sala. Liga a televisão, oferecendo um barulho de fundo que cortaria qualquer silencio constrangedor que se pudesse formar entre nós.
- Então, Ivo, conta-me mais sobre ti. - pede.
- um... Não há muito para contar... - Hesito.
- Força.
- Bom... há cerca de meio ano atrás, mudei-me de casa dos meus pais... Fui viver com outros quatro amigos meus para uma casa grande, mas depois aconteceram umas quantas coisas que tornaram o ambiente entre mim e eles de cortar à faca. Por isso acabei por ir morar para a mercearia.
- Ah... BOm, mas então, sempre quiseste ter uma mercearia, foi?
- Na verdade... Nunca soube muito bem o que eu queria ser. Acabei por tirar o curso de arquitectura e de Artes. - Contei, encolhendo os ombros e sentando-me no sofá.
Ele pareceu surpreendido.
- Hum, arquitectura?
- Sim, eu sei, não é muito original, mas pronto... - Murmuro.
- Ora essa, não tenho nada contra arquitectura, aliás, até é disso que vivo.
- És arquitecto?
- Sim.
- uau... - Exclamo. - A única coisa que eu fiz foi desenhar a casa onde morava com os meus amigos... E tu, já desenhaste que estruturas?
- Um centro comercial em Nova Iorque, umas quantas casas nos subúrbios de Londres, algumas moradias em Los Angeles... Um pouco de tudo por aqui e por ali. Mas, para ser sincero, acho que tenho uma veia da minha avó e adorava ter algum trabalho relacionado com culinária...
Eu sorrio, encorajando-o. Entretanto, a sua avó entra na sala.
- Hum, eu não confio muito em chefs de cozinha, não desde que o último que conheci partiu o coração do meu neto. - Rosnou a senhora.
Formou-se um silêncio constrangedor no ar.
- Avó... - Ele suspirou. - Bom, com a minha avó, já se sabe, uma pessoa que acabo de conhecer fica a descobrir tudo o que há a saber sobre mim em apenas minutos, mesmo as minhas cartas na manga...
Rio-me. A senhora olha para o neto e encolhe os ombros.
- Ora, se ele tem alguma coisa contra homossexuais, então não é bem vindo nesta casa e não daria um bom amigo para ti, por isso mais vale ficar a saber e...
- Não, não tenho nada contra! - Corto, em minha defesa. - Pelo contrário... Jogo na mesma equipa.
Subitamente, arrependo-me de o dizer, ao ver um brilho estranho nos olhos da Dona Leonor.
- Ora, já têm bastante em comum, vêem? Arquitectos, gostos iguais!
- Não vás por aí avó...
Eu olho para o relógio e desculpo-me, pois teria de abrir a mercearia pouco tempo depois. Mas não seria a última vez que veria Mateus ou a Dona Leonor.
A rotina impôs-se sem eu sequer me aperceber. Todas as manhãs, a Dona Leonor aparecia, pedia-me dicas para ingredientes frescos, e acabava a convidar-me para almoçar. Depois, todas as noites, enviava o neto, com restos do almoço par ao meu jantar, e eu e ele acabávamos a conversar até tarde, até que Matt saía, de volta a casa da avó. Nisto se passou um mês, rápido e em flecha. Nessa noite, Matt tinha ficado até mais tarde.
neste momento ele está a olhar para uma embalagem de pickles, com um sorriso nostálgico e melancólico.
- O que é que te está a deprimir tanto nesses pepinos em conserva? - Interrogo, quase sem levantando os olhos dos papéis das contas.
- Oh... É só que... O Billy adorava pickes...
Ergo uma sobrancelha.
- Deixa-me adivinhar, o cão morreu intoxicado por lhe dares pickles a mais? - Interrogo, ironicamente.
ele solta uma gargalhada e volta apousar o jarro na prateleira.
- Billy não era o meu cão de estimação, é o meu ex-namorado, o tal chef que me partiu o coração, como disse a minha avó.
Levo a mão à boca, pedindo desculpa.
- Meu deus... com um nome desses, nem devias ter começado a relação... - Critico, jocosamente. - Mas... O que aconteceu?
- Bom.... uma noite fui ao restaurante dele, fazer-lhe uma surpresa. Era o nosso segundo aniversário. Quando entrei na cozinha, apanhei-o a ter relações sexuais com uma das empregadas de mesa.
Trinco o lábio.
- Auch... - Praguejo.
- Pois... Então e tu, alguma relação falhada?
Sustenho a respiração e solto um suspiro. Ele testa-me com um olhar.
- Se não quiseres falar disso, compreendo... Mas torna-se fácil demais falar contigo sobre mim, e acabamos por quase nunca falar sobre ti. És tão misterioso e enigmático para mim como és interessante e divertido.
Sinto as faces corarem, mas acabo por ceder.
- Bom... Quando ainda andava no secundário, a minha melhor amiga tinha um namorado. no início eu não me dava com ele, mas depois ele começou a aparecer mais vezes junto a ela. Não demorou muito até que eu e ele nos tornássemos bons amigos. Um dia ele pediu-me ajuda para um trabalho e fui até casa dele... Uma coisa levou à outra. repetiu-se a situação durante meses sem que ninguém soubesse... Senti que estava a trair a minha melhor amiga, e que estava a ser usado para satisfazer desejos escondidos dele, e ainda que ele também a estava a usar para esconder o que realmente sentia. Mas as coisas começaram a mudar... Ele começou a ficar mais aberto á possibilidade de assumirmos a relação... isso destroçaria a minha amiga... Entretanto fizemos dezoito anos, e quando ele estava prestes a contar-lhe, ela desapareceu.
- Oh, e o que aconteceu a essa tua amiga?
Trinco o lábio.
- Voltou quatro anos depois, e foi morar para a mesma casa que eu.
- Ela... Ela ainda não sabe de nada?
- Não valeria de nada. Eles já não estão juntos, e isso só serviria para a magoar.
- Compreendo...
Ele olha pra o relógio, e adivinho as suas palavras seguintes, as mesmas que dizia todas as noites.
- Oh, olha para as horas! Tenho de ir, a avó deve estar preocupada!
- Tudo bem, vai. - Respondo, sorrindo.
Ele apercebe-se da tristeza nos meus olhos e no meu sorriso.
- Desculpa ter-te feito relembrar isso... - Murmura, aproximando-se do balcão.
Ele pousa a sua mão por cima da minha, observando os meus dedos. Depois, sobe com ela pelo meu braço até ao meu pescoço, e puxa a minha face para junto da dele, pousando levemente os ses lábios nos meus. EU correspondo, aproximando-me mais, e pressionando os meus lábios mais contra os seus. A sua língua acaricia a minha, e com relutância quebramos o beijo. Agora, volto a sorrir, desta vez genuinamente feliz.
- Gosto mais desse teu sorriso iluminado do que do sorriso sombrio de há pouco. - Comenta, também sorrindo, e depois sai, deixando-me a suspirar.