- Argh! - Gritei, agredindo os botões do comando da playstation, para tentar atingir um boneco com a espingarda que empunhava.
- Que se passa, querido? - Perguntou a minha avó.
A Avó Mariana ia passar as tardes sempre lá a casa da minha Tia Carla. A Tia tinha-me acolhido depois da morte dos meus pais e a Avó habituou-se a passar por lá todos os dias para ver como eu estava a lidar com a situação.
- Não se passa nada, avó. - Menti.
- Querido, não me mintas. Sempre que se passa alguma coisa que te esteja a frustrar tu começas a jogar jogos de tiros com pessoas a sério em vez de mortos-vivos.
- Isso não é verdade!- Exclamei.
- Carlinha, o teu sobrinho está a jogar jogos de tiros com pessoas a sério em vez de mortos-vivos...! - Informou a minha avó, dirigindo-se à minha tia, que acabara de chegar das compras.
- Oh, deuses. O que é que te está a incomodar, Tintim?! - Perguntou a minha tia preocupada.
Olhei para a minha avó repreensivamente. ela revirou os olhos e continuou a tricotar, espreitando pelo canto do olho para o televisor onde estava escrito, em letras vermelhas "Game Over".
- Nada! - Repliquei.
- Sim, tu jogas contra mortos-vivos quando te queres divertir, sadicamente. - Afirmou a minha tia. - E jogas com pessoas quando queres descarregar as tuas frustrações. Agora conta-nos o que se passa.
Suspirei. Quando aquelas duas mulheres, tão opostas uma à outra e tão contraditórias entre si se uniam contra alguém, era impossível tentar defender um ponto de vista diferente do delas.
- Fizeram-me um convite lá na escola... - Comecei.
- Alguma futura namorada? - Perguntou a minha avó, ansiosa.
- Avó!! - Exclamei.
- Ah, sim filho... Desculpa. - Comentou ela. - Esqueci-me que tu não és dado a raparigas...
- Sim, diz-se homossexual ou gay. - Refilei, cruzando os braços.
- Tu lá sabes o que lhe queres chamar, querido. - Defendeu ela, continuando o seu croché.
- Convidaram-me para ir ao Clube de Artes de Performance, cantar. - Desvendei.
A minha Avó e a minha Tia entre-olharam-se, surpreendidas e receosas. Um silêncio gelado caiu na sala.
- Querido, devias ir. - Incentivou a minha avó. - Já é mais que tempo de seguires em frente.
Lembrei-me das palavras do professor que me tinha falado. Speedy dissera-me que o nome dele era Jorge Mendonça. Contei à minha tia e a minha avó o que sabia sobre ele. Assim que lhes disse o nome do homem, senti-as mexerem-se desconfortavelmente.
- Agora são vocês que não me estão a contar qualquer coisa... - Comentei.
- Tu não te lembras tele, Martim? - Perguntou a minha Tia.
Eu estremeci. A minha Tia só me tratava por Martim quando estava séria. Ela quase sempre me tratava pelo diminutivo, desde que eu uma vez fora ao barbeiro e voltara com um penteado idêntico ao da personagem da banda-desenhada preferida dela.
- Não...? Devia? - Arrisquei.
- Ele... Era o condutor do outro carro onde os teus pais embateram. A mulher dele ia com ele e também faleceu no acidente, lembraste? - Contou a minha avó, por entre suspiros.
- Ai...? - Guinchei, largando o comando no colo. - Que linda mer...
- Olha a linguagem!! - Cortaram a minha Tia e a minha Avó ao mesmo tempo.
Aquilo explicava como o homem sabia o meu nome. E me tinha falado de uma forma tão informal. Fiquei com ainda menos vontade de ir no dia seguinte à reunião do clube.
- Mas vais. E acabou-se a discussão. - Ordenou a minha Tia.
- Hei, eu é que tomo essa decisão! - Refilei.
- Não quando a tua decisão é deitar aos gatos vadios o teu talento! - Exclamou a minha avó, em mais uma das suas muitas comparações e referências aos gatos sem dono a que ela dava de comer. - Se eles se alimentassem do dom que atiras à rua, eu não precisava de lhes dar comida o resto da minha vida.
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