quinta-feira, 30 de junho de 2011

A.M.I.G.O.S. - 1ª Temporada; Episódio 4 - Daniel

Há já uma semana, desde a conversa que Giuseppe e Óscar tiveram comigo na mercearia, que a agenda me tem chamado silenciosamente, instigando-me a curiosidade. Finalmente, deixo de resistir ao impulso e agarro o livro de capa preta, folheando-o apressadamente. O seu nome salta-me à vista o meu coração embate contra o meu esterno aceleradamente. Olho em volta, procurando por alguém que me possa impedir de fazer o que estou prestes a fazer. Agito a cabeça e tiro o meu telemóvel do bolso. Marco o número e espero que atendam.
- Estou sim, quem fala? - Pergunta uma voz masculina do outro lado.
O número ainda é o mesmo. Reconheço-lhe perfeitamente a voz.
- Daniel...? É o Ivo...
- Ah, Ivo?! Há quanto tempo! Tudo bem? - Cumprimenta vivamente.
- Não sei bem... Há algo que eu queria falar contigo, mas preferia fazê-lo pessoalmente...
- Mm... Eu estou em Coimbra neste momento, vai ser difícil ir aí...
- Não há problema. Diz-me uma hora e eu lá estarei para conversarmos.
- Tudo bem...

Tal como combinado, ele sai do edifício àquela hora. Ele reconhece-me rapidamente. Tem os cabelos negros, os olhos castanhos, estatura alta e um andar determinado. Aperta-me a mão, cumprimentando-me.
- Então... A que se deve este súbito interesse em mim? - Interroga, sorrindo.
- Há algo que me tem andado na cabeça. Uma pergunta cuja resposta só duas pessoas têm, e uma vez que a outra pessoa não ma quer dar, recorro agora a ti...
- E que pergunta é essa?
- Daniel... Porque é que a Susana desapareceu?
Ele agitou-se, desconfortável, trespassando-me com os seus olhos como se de lanças se tratassem.
- Porque é que vens com essa conversa agora, Ivo?!
- Apenas... Porque sim.
- Mentes mal, disfarças ainda pior... Ela contactou-te? - Inquire, esperançoso.
- Sim...
- O que é que ela te disse? Ela está bem? Onde é que ela está?
- Em minha casa... - Murmuro.
A sua expressão fica como a de quem leva um par de estalos sem os esperar. A sua boca move-se como a de um peixe - abrindo e fechando sem soltar som algum.
- Quando é que...?
- Há uns meses... Ela ainda não te falou?
- Não... Mas se ela não te contou é porque prefere que não saibas... Não sou a pessoa indicada para te contar, Ivo...
- Pois...
- Desculpa... Então e como é que tu estás com esta história toda? Lembro-me bem que ficaste de rastos quando ela se foi embora...
- Estou a tentar aceitar. - Respondo, pensativo, relembrado os momentos que eu e ele passáramos juntos após o desaparecimento de Sandra.
- Acredito que seja difícil...
O telemóvel toca, sobressaltando-me. Sem ler o nome que aparece no ecrã, reconheço quem está do outro lado da linha.
- Ciau! Onde estás, caro?
- Porque perguntas...? - Interrogo, na defensiva.
- Hey, porquê tão agressivo? - Exclama. - Era só para saber se vais abrir a mercearia? A Matilde pediu-me para ir buscar uns ingredientes para  salada, mas...
- Eu agora não posso, Giuseppe. Eu não estou em Sintra...
- Então onde raios te foste enfi... Oh... Tu foste ter com ele?! E não disseste nada?
- Ouve, Giuseppe! - Gaguejo, olhando suplicante para Daniel.
- Espera só até a Sandra saber disto, traidor! - Replica, chantageando-me.
O telefone desliga-se, deixando-me com o som do meu coração bombeando o sangue através do meu corpo, espalhando a adrenalina e os suores frios
- Acho que o melhor é eu ir andando... O Giuseppe está prestes a criar uma revolução...
- Mm... Pensei que fosses ficar mais algum tempo... - Comenta, convidativamente, olhando para o céu.
- Não. Antes talvez ficasse. Mas já não...
E caminhei para longe dele recordando os tempos de antes.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Sonho à beira-mar

Sopra forte um vento gelado. Observo as estrelas brilhantes, pontos brancos a alaranjados contra um céu negro da noite que vai a meio. As ondas requebram na areia granulada que sinto debaixo dos dedos das mãos que me apoiam, ali sentado na praia, à beira mar. A minha mente divaga por fantasias - príncipes bem vestidos convidando princesas elaboradamente arranjadas para uma dança ao som de violinos e do piano; heróis sombrios de capuz tapando a cara, correndo pelos telhados de uma cidade medieval agitada, fugindo de uma qualquer injustiça que lhes manchara erroneamente o nome de família outrora reconhecido; homens no espaço pisando pela primeira vez a poeira fina da superfície marciana, observados de longe por hominídeos de pele semelhante a couro cinzento queimado pelo sol abrasador; piratas esgrimando com os seus sabres floreados, tentando conquistar ou defender o seu navio de que se orgulham, com as velas estendidas a todo o pano prontas a saborear aquela brisa marítima que se levanta por perto; sereias curiosas que nadam até à costa, deitando-se maravilhadas na areia à vista de um naufrago de faces angulosas e firmes marcadas pela angústia.
Algo me acorda destas minhas divagações sonhadoras com outros tempos idos ou que estejam por vir. É um som fraco, suave. Grãos de quartzo que formam aquela areia da praia a serem esmagados por pés humanos que caminham lentamente na minha direção. Mas o meu olhar mantém-se no céu. Não preciso de olhar para trás para saber quem é. Os seus passos são me inconfundíveis, quer estivessem sobre areia, sobre mármore ou sobre a relva. Ele cai de joelhos junto às minhas costas, envolvendo-me o peito e os ombros com os seus braços quentes. A minha mão, mais por instinto do que por planeamento, afaga-lhe o pulso, enquanto ele me cumprimenta com um delicado beijo no pescoço e me sussurra um olá ao ouvido.
- Buona sera, mio caro. - Digo, num murmúrio.
Não é a minha língua nativa, mas sei que ele gosta de me ouvir falar em italiano. Consigo adivinhar o sorriso na sua face, apesar de ter agora os olhos fechados, enquanto sinto o seu aroma que tanto me faz desejar estar a todo o momento com ele.
- Como estás?
A sua voz é-me tão familiar aos ouvidos e, no entanto, cada vez que ele fala, sinto que estou a ouvir aquele som angelical pela primeira vez. A sua mão acaricia-me o peito um pouco mais, antes de ele aproximar os seus lábios dos meus. Quando as nossas bocas se tocam, sinto-as. E sei que ele também as sente. As borboletas no estômago. Aquela sensação de que o meu peito pode rebentar de alegria a qualquer momento. A minha outra mão desloca-se em direção à sua cara e acaricia-lhe a face, enquanto ele se põe lentamente  ao meu lado. Quando quebramos o beijo, ele está sentado junto ao meu ombro, e entrelaça os seus dedos nos meus. E ficamos simplesmente a observar as estrelas.
Já me haviam perguntado. E eu tinha medo disso. Perguntaram-me se eu gostava dele o suficiente para o fazer feliz. Mas agora o medo já é apenas uma nuvem negra sobre o meu passado. Sim, gosto dele o suficiente para o fazer feliz, para o fazer o rapaz mais feliz do Universo! Sei que farei tudo ao meu alcance para estar sempre com ele, para o apoiar sempre que ele precisar, para conversar com ele quando tudo parecer estar a falhar, para simplesmente partilhar com ele os bons momentos das nossas vidas que se cruzaram.
- Em que estás a pensar? - Pergunta-me, curioso, fitando os meus olhos.
- Em ti. Como sempre faço. Penso em ti. - Respondo, com uma voz séria e profunda.
Um sorriso desenha-se novamente na sua cara. Aquele sorriso que me faz sentir o centro do mundo de alguém. É aquele sorriso que quero ver sempre a toda a hora na sua cara. Nunca aquelas lágrimas dilacerantes de mágoa e desespero, mas sempre aquele sorriso pacífico e genuíno. Sinto de novo a sua mão mexer-se um pouco entre os meus dedos.
- Nunca pensei vir a amar uma Estrela, algo tão distante e inalcançável pelos homens... - Suspiro, olhando de novo para os míticos pontos luminescentes no céu.
Subitamente, o céu começa a ficar alaranjado, e azul turquesa. Um fogo ergue-se sobre o mar. É aquele astro gigante, que nos presenteia a ambos com o seu brilho e calor.
- Mas apaixonei-me por uma estrela e observo-a na praia. Mas não é ao Sol que me refiro. É a ti, que brilhas mais para mim do que o Sol, porque me guias no escuro mesmo quando o Sol se parece ter abatido e abandonado a minha vida. - Completo, com um sorriso atordoado na cara.
Ele volta a beijar-me carinhosamente, e eu sinto o coração bater fortemente. Já não bate por mim. Apenas bate para me manter vivo para aquele rapaz, aquele rapaz que tanto adoro e que tanto merece o melhor que o Universo lhe possa dar. Aquele rapaz que me faz querer escrever sobre o que sinto por ele.

Adoro-te, mio caro, mais do que ao próprio Sol.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A.M.I.G.O.S. - 1ª Temporada; Episódio 3 - Mexericos

Peso o saco com as mação que a D. Lídia me entregara para a mão. Depois de um sonoro bip, indico-lhe o preço:
- São dois euros e trinta e oito cêntimos, por favor.
- Ah, acho que não tenho certo para te dar, meu filho... - Queixa-se a idosa.
- Ora, não seja por isso, eu tenho troco! - Tranquilizo, sorrindo-lhe amavelmente.
Enquanto ela procura por moedas, chega-me aos ouvidos a conversa de outras duas senhoras já de idade.
-... o italiano, se queres que te diga, também não é nada inocente. Se ele refreasse os cavalos, o casamento deles não chegaria ao fim...
- Estão a falar do episódio da novela de ontem? - Sussurra-me a voz de Sandra, por trás de mim, junto do meu ouvido.
- Provavelmente.
- Conheço-te. Vi que a conversa te afetou. E se falam de um italiano, provavelmente é do Giuseppe. Que se passou?
- Já te conto. - Digo, apressado, entregando o troco à D. Lídia e registando as compras das outras duas mulheres.
Elas encontram-se caladas, olhando-me de alto abaixo, avaliando a minha expressão. Finjo que não ouvira nada do que acabaram de dizer e despeço-me dela da forma mais simpática que consigo.
- Sim, era sobre o Giuseppe... Sabes que os Arcada se vão separar...?
- Ah, sei. Não se ouve outra coisa na vila a não ser que ela traiu o marido... - Sandra pausa repentinamente, e quase posso imaginar uma luz acender-se por cima da sua cabeça. - Ela traiu-o com o Giuseppe?
- Sim... Eu tive que lá ir contar ao pobre coitado do marido, para ela parar de o chantagear...
A pedido dela, conto-lhe o que se passara três noites antes. A sua expressão vai evoluindo à medida que o grau de surpresa que ela sente vai aumentando cada vez mais. No final da história ela olha para o vazio.
- É por isso que tens andado tão ausente...?
- Sim... Esta história toda... Eu não me sinto no direito de destruir uma relação...
- Mas ela não é mulher para ele. Foi melhor assim. Olha, vou andando. Tenho de ver se consigo algum trabalho...
Despeço-me dela com um beijo na cara e olho em volta. A mercearia está vazia, mas não por muito tempo. Óscar e Giuseppe entram de rompante pela loja.
- Não me digam que estavam à espera que ela saísse para virem aqui falar comigo... - Comento, apontando para o local onde tinha estado Sandra.
- Sim... Nunca ficaste curioso sobre o que é que a levou a desaparecer da forma que o fez? - Pergunta Óscar.
As suas sardas dão-lhe um aspeto de criança, e a sua expressão atual apenas ajuda a fazer com que ele pareça ainda mais jovem.
- Não quero esta conversa agora. - Resmungo, fitando ligeiramente o italiano.
- Vá lá, sabes bem que queres saber! - Exclama ele, em resposta ao meu olhar.
- Sim... - seduz o ruivo. - Vá lá, bebé...
Rosno-lhe, tirando a minha bata e atirando-a para cima do balcão. Ele chama-me assim quando me quer levar a fazer algo. Não que eu sinta algo por ele. Mas é a forma como ele o diz. Faz-me sentir especial. E é raro alguém me fazer sentir assim. Mas Óscar sabe como entoar aquela palavra de forma a que eu o siga como um cachorro. Ele consegue imitar na perfeição a voz que um ex-namorado me fazia quando me chamava por aquela alcunha.
-  Vocês já sabem de alguma coisa? - Pergunto.
- Não... Mas há uma pessoa que talvez saiba...- Comenta Giuseppe.
- Quem?
- Estás mesmo a fazer essa pergunta? - Interroga Óscar. Ao ver que eu estava a falar a sério, ele revela o que estava a pensar. - Tenho um nome para ti: Daniel Rodrigues.
Daniel era o namorado de Sandra quando ela desaparecera. Na altura, ele dera a entender que sabia qual o motivo da fuga da rapariga, já que dizia ser o culpado por tal ter acontecido. Mas ele já nem morava em Sintra.
- E como pensam contatá-lo? - Inquiro, tentando demovê-los daquela ideia.
- Sabemos que ele mora em Coimbra... Sabemos quem ele é... - Murmura Óscar.
- E tu sabes a morada dele... - Atirou Giuseppe.
- Como é que... Quero dizer! Não, não sei! - Gaguejo.
- Sim, sabes!
- Ok, mas não quero falar com ele! - Replico.
- Porquê? - Exclamam em uníssono
- Porque não. Estamos a invadir a privacidade de ambos! - Argumento. - E agora saiam-me daqui que devem aparecer clientes a qualquer altura!
Abano a bata à minha frente afugentando-os. Eles saem do estabelecimento com caras de desapontamento. Eu corro para o balcão e procuro pela agenda que costumo guardar comigo. Lá está ela, intacta, com todos os meus apontamentos que fizera ao longo da vida sobre lugares, pessoas e sobre mim mesmo. Se eles tomassem mão àquele livro, desvendariam segredos que eu não lhes queria revelar nem mesmo a eles, os cinco amigos que me são mais próximos.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

A.M.I.G.O.S. - 1ª Temporada; Episódio 2 - Chantagem

Fecho a máquina de lavar, esfregando as mãos. Finalmente, acabo a minha tarefa dessa noite. Olho em volta. Ainda me estou a habituar àquela casa, apesar de já nos termos mudado para lá há uma semana e meia. Giuseppe entra na cozinha, sobressaltando-se com a minha presença.
- Oh, que se passa? - Interrogo, desconfiado.
- Ah, nada, nada... - Responde.
Ele procura por algo nos armários da cozinha, de forma agitada. Percebo que ele está a tentar disfarçar.
- Giuseppe. - Rosno. - O que é que te está a dar cabo dos nervos...?
- Ok, olha, se eu te disser, promete-me que fica entre nós...
Cruzo os braços e batuco com o meu pé descalço nos mosaicos brancos, esperando as suas palavras seguintes.
- Então... Há uns dias, eu conheci uma rapariga... E ela era girinha... Estava convidativa... Notava-se à distância que ela queria brincadeira...
- Oh, se me vais dar pormenores do que fizeste com ela, esquece, meu querido! - Exclamo, fazendo uma careta.
- Nada disso... Pronto, para resumir, deixei-me levar. Estava inclinado para raparigas naquela noite...
- Sim, já percebi que foste para a cama com ela! - Corto eu, erguendo uma sobrancelha.
- Só houve um pormenor que ela me ocultou...
- Que foi...?
- Ela era casada...
Eu estou prestes a chamá-lo uma série de nomes pouco bonitos, mas o italiano apercebe-se e deita-me a mão à boca, cortando-me a respiração.
- O pior ainda está para vir... - Informa, olhando-me nos olhos.
Vejo a aflição naquelas duas auras cor de avelã. O assunto parece sério.
- Ela não é casada com um tipo qualquer... Ela é casada com um polícia.
- E isso interessa para a história porquê?! - Pergunto. - Ela era casada, não ias para a cama com ela. Bom, muito menos sabendo que o marido dela é polícia...
- Sim, mas eu só soube disso anteontem...
- E...?
- E ela gostou tanto de estar comigo... Que queria mais, eu disse-lhe que não. E ela chantageou-me... Ameaçou que, se eu não me continuasse a encontrar com ela, contava ao marido que eu a tinha violado...
Os meus olhos abrem-se de espanto. Se ele não estivesse tão sério, a fitar-me os olhos, eu não acreditaria naquela história.
- E sabes o nome dela...? - Interrogo.
- Sei... Cristina. Cristina Arcada. - Informa.
Engasguei-me ao ouvir o apelido. Giuseppe tentou ajudar-me mas eu afastei-o.
- Meu grandessíssimo pitosga! - Exclamo. - Mas não sabias que ela é a mulher de um Polícia?!
- Conhece-la?
- Claro, o marido dela passa todas as manhãs pela mercearia para comprar os vegetais frescos, depois de vir do turno... - Sento-me numa das cadeiras. - Meu Deus... depois disto não sei como vou olhar para  cara do homem...
- Fala com ele! Conta-lhe a verdade!
- Vamos lá a casa deles! - Digo, erguendo-me.
- Agora?
- Sim! Esta história tem de ser tirada a limpo!
- Que história? - Pergunta Matilde, que entretanto entra na divisão, alertada pelo tom alto das nossas vozes.
- Não há tempo para explicar. Anda! - Ordeno.
Puxo pelo braço de Giuseppe, arrastando-o até ao meu mini cooper. Ele tenta ainda fazer-me voltar atrás, mas estou decidido a resolver toda aquela trapalhada rapidamente, antes que tome medidas desproporcionadas. A dada altura da viagem, ele começa a suplicar-me na sua língua materna.
- Não vale a pena, caro, eu não te percebo! - Minto, olhando em frente par a estrada.
- Ah, percebes sim! - Replica, já em português.
quando finalmente chegamos, ele recusa-se a sair do carro. Eu caminho determinado em direção à vivenda. É ela quem me atende a porta. Algo na sua expressão me diz que ela sabe porque estou ali.
- Posso falar com o seu marido...? - Pergunto, amavelmente.
- Não sei se podes...
- Oh, Ivo! Entra! - Exclama uma voz poderosa do interior da casa.
Eu aceito o convite dele e peço-lhe para falar com ele em privado. Subitamente vem-me à cabeça que posso estar prestes a destruir um casamento. Mas aquele homem merece melhor do que uma mulher daquelas.
- Sr. Arcada, tenho algo para lhe dizer... Lembra-se de eu ter falado no meu amigo Giuseppe...?
- Sim! Claro. Meteu-se em alguma alhada de novo?
- Pois... E o Sr. não vai gostar de saber em qual foi...
Conto o sucedido pausadamente, avaliando a reação do homem. Os sinais indicam que ele está desapontado e zangado.
- O Giuseppe tem sorte em ter um amigo que se preocupe tanto com ele como tu... Eu vou falar com a Cristina... As coisas não podem continuar assim... Peço desculpa por ela me ter usado como forma de obrigar o teu amigo a fazer o que ela queria...
Sento-me de novo ao volante, respirando fundo. Giuseppe observa-me.
- Tu tens um jeito para as pessoas... Não devias ter escolhido a mercearia...
- Cala-te... - Rosno, com voz profunda e cansada. - Não quero ter essa conversa agora. Apenas certifica-te de que não destróis mais nenhum casamento...
Faço pressão no pedal com o meu pé, fazendo o carro avançar de novo em direção à nossa casa. Sinto-me mal comigo mesmo quando me vou deitar, depois do que eu acabara de dizer aquele homem tão paciente e justo. Cristina era uma das razões que me faziam ter dificuldade em confiar nas pessoas. As aparência iludem, e cada um aparenta ser apenas aquilo que quer que os outros vejam neles.

sábado, 18 de junho de 2011

A.M.I.G.O.S.- 1ª Temporada; Episódio 1: A Mudança

Sandra deixa cair pesadamente uma das caixas de cartão em frente ao portão da casa. À sua frente estendia-se uma estrada alcatroada em direção à garagem. A casa ergue-se acima do muro, com os seus dois andares repletos de janelas a intervalos regulares.
- Onde foram desencantar esta beleza?! - Pergunta, gaguejando.
- Aqui! - Informa Giuseppe, tocando com um dedo na minha testa.
 A boca de Sandra abre-se ainda mais e eu reviro os olhos, girando a cabeça na direção do meu amigo.
- Foste tu que a desenhaste? - Inquire.
- Sim. Com ideias de todos, obviamente... - Respondo apressadamente. - Está ao gosto de todos... Mas isto foi feito antes de tu voltares, por isso, não há um bocadinho teu naquela casa.
Já não posso retirar as palavras duras que acabo de expressar. Mas ela sorri-me.
- Nesse caso, terei de dar o meu melhor para que tal mude.
Andreia aparece subitamente do monovolume que conduz e arrasta-me pela estrada a cima, virando repentinamente à esquerda e empurrando-me para dentro da cabana de arrumações. à minha volta predomina o material para manutenção da piscina, algumas bóias, uma quantas bolas já cheias, cadeiras de metal articuladas e arrumadas a um canto... E uma mulher a olhar para mim indignada.
- Que queres? - Interrogo, com as mão erguidas em minha defesa.
- Ainda perguntas? Será que não és capaz de dar uma hipótese que seja à rapariga que mais te ajudou no secundário?
- Ajudou, e muito. E depois desapareceu como se os que a rodeiam não se importassem. - Replico.
Ela suspira, desesperada. A porta da cabine abre-se de rompante. Giuseppe olha para nós espantado, espreitando sobre o ombro para verificar se estava mais alguém nas redondezas.
- Caro, pensei que não estavas afim de meninas... - Graceja.
- E não estou. E em particular a fim de uma certa menina. - Silvo.
- Desisto. - Desabafa Andreia, empurrando o italiano para longe do seu caminho.
- Discussão sobre a Sandra de novo? - Pergunta. - Devias tentar fazer um esforço.
- Estou a tentar.
- Nota-se... Anda lá, a Matilde acabou de fazer o tal arroz de pato que nos prometeu!
Ele puxa-me pelo braço, fechando a porta atrás de mim. A cheiro adocicado que paira na entrada da casa convida-nos a caminhar em direção à sala de jantar. Lá, encontra-se uma mesa posta, onde já se encontram todos os outros. Sandra, Andreia e Óscar sentados, e Matilde pousa um tabuleiro fumegante na mesa. Sento-me numa das cadeiras vagas, lambendo os lábios com antecipação. A reação do italiano é idêntica.
após começarmos a comer, Giuseppe, sempre juvenil, ergue o seu copo que já enchera pela segunda vez.
- Proponho um brinde. - Incita. - A nós, amigos inseparáveis, que agora arranjaram um lar onde continuar assim!
Cinco outros braços segurando copos se ergueram, em resposta àquelas palavras. O meu olhar pousa em Sandra e o dela em mim. Noutros tempo, eu e ela havíamos sido muito próximos. No entanto, numa altura em que eu precisava da sua ajuda, ela desapareceu sem deixar rasto, apenas um bilhete informando que estava bem e que levava a sua mota e o seu casaco de cabedal preferido - o que eu lhe tinha oferecido nos anos. Ela olha-me, convidando-me a segui-la.
Levantamo-nos, sem troca alguma de palavras, pois ainda conseguimos ler as expressões faciais um do outro. A divisão fica em silêncio e sinto os olhos dos restantes fitarem as minhas costas. Ela guiou-me até ao seu quarto. De uma das caixas tirou uma peça de roupa preta gasta e de aspeto pesado. Subitamente, reconheci as faixas vermelho-escuras nos ombros.
- Cristo! Ainda tens isso contigo? - Exclamo, admirado.
- Sim, Ivo. Eu nunca me esqueci de ti. Andei sempre com o casaco, desde que mo ofereceste. Claro... Ainda o tentei usar mais, mas como ficou muito gasto... Acabei por ter medo de o estragar completamente com o uso. Mas guardei-o sempre comigo... Não sabes a razão por detrás da minha ida, nem por detrás do meu regresso. No entanto, fica a saber que continuo a ser a tua amiga.
- Veremos. - Respondo, com um tom de teimosia falsa.
Ela sorri.
- Aos novos tempos... - Sussurra.
- Para que tenham tudo de com que os velhos tempos tiveram. - Completo, saindo da divisão, adivinhando o sorriso que se forma na sua cara.

terça-feira, 14 de junho de 2011

O Tesouro do Grão-Mestre - Capítulo 1

Uma gota escorreu-lhe pelo nariz arqueado. Os seus olhos abriram-se, revelando-se castanhos, transparecendo bondade e preocupação. As nuvens cinzentas refletidas nos seus olhos ameaçavam desabar sobre Lourdes. Olhou à sua volta, vendo as gentes atarefadas, correndo de um lado para o outro, fugindo da chuva. Olhou para o seu peito. O manto de lã castanha escondia-lhe a  túnica branca e imaculada, onde se encontrava bordada a cruz vermelha dos templários. Ao longe, um estranho burburinho ergueu-se no ar, chamando-lhe a atenção. Um pequeno grupo de guardas da cidade moveu-se rapidamente em direção aos portões da cidade. O jovem estava prestes a dar maia volta, para se afastar da confusão, quando ouviu o trote de um cavalo. Era uma criatura magnifica, de pêlo negro luzidio, em tratado, mas já carregando com o seu cavaleiro o fardo do cansaço. Mas algo lhe chamou a atenção naquele jovem cavaleiro. Soube nesse mesmo instante que tinha de intervir. Um guarda preparava-se para desferir um golpe no pobre animal, perto de atirar com o cavaleiro ao chão. O som de metal a morder aço troou no ar, silenciando todos. A sua capa castanha caíra. A sua túnica branca brilhava levemente.
- Pierre, que fazeis aqui...? - Perguntou o Templário num francês áspero.
- Uma mensagem do Grão-Mestre, e algo mais que ele me pediu para lhe entregar.
- Tratemos disso depois, agora tereis de me ajudar a subir para esse fantástico animal, para que possamos partir o quanto antes.
Os guardas não se mostraram alheios à conversa e investiram. Habilmente o templário afastou-os com a sua espada, que soprava o ar, com um ameaçador silvo e um brilho de metal sedento de sangue. O assobio de uma flecha passou-lhe perto do ouvido, terminando com um som seco de carne a ser perfurada e um grito contido do desafortunado mensageiro. Fernando, o Templário, decidiu finalmente erguer-se para o dorso do cavalo, fazendo-o galopar pela cidade. Os homens do Rei tentavam correr atrás do animal, sem sucesso. Os portões fechados barravam o caminho dos dois homens.
- Teremos de usar outra via... - Comentou o Templário.
- Não, senhor, deixai-me para trás, que eu sou dispensável e estou ferido. Levai o cofre e a carta lacrada. As instruções do Mestre de Molay estão aí nesse papel. Ide, e que o Senhor vos acompanhe.
Fernando era jovem, mas já tinha batalhado contra os mouros lado a lado com os seus companheiros. Sabia melhor que ninguém que às vezes um homem tinha de ser sacrificado por um bem maior. O próprio Jacques de Molay um dia lhe dissera:
- Quando é necessário sacrificar uma vida para salvar milhares de outras, a única escolha que temos é esquecer que ele morreu, ou rezar para sempre pela sua alma. Mas se essa vida tem de encontrar o Senhor lá no alto para que mais possam usufruir da sua na Terra, então que seja, meu filho.
Pegou na pequena caixa de madeira e na carta que o jovem Pierre lhe entregava, ergueu-se no dorso do cavalo, e saltou para um telhado baixo de uma das casas. Saltando de telhado em telhado, esquivando-se de flechas que ameaçavam morder-lhe os calcanhares, conseguiu finalmente chegar a uma casa cujo todo quase chegava ao da paliçada. Um salto de fé e transpôs as defesas da cidade, caindo nos ramos de uma árvore que ali repousava há anos. As folhas ampararam a queda, mas os espinhos afiados das ramagens atravessavam-lhe a túnica e picavam-lhe a pele. Deixou-se escorregar do ramo e caiu no chão lamacento. Teria de ir para algum lado onde os homens do Rei não o pudessem alcançar. Teria de fugir de França. À sua frente, majestosos, erguiam-se os Pirenéus, com os cumes brancos com neve, manchados do cinzento da rocha. Por trás deles escondia-se a Península Ibéria - Espanha e Portugal. Decidiu rumar até ao país vizinho, antes de abrir o envelope lacrado, decorado habilmente com tinta negra.
- Para Espanha sigo então... - Comentou para si mesmo, correndo rapidamente por entre os arbustos.
Atrás de si, podia ouvir o trotar de cavalos e o som de botas metálicas a pisarem a gravilha do caminho que se estendia em frente à cidade.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

O Tesouro Do Grão-Mestre - Prólogo

Toctoc toctoc. O cavalo trotava rapidamente, ao som dos incentivos do homem que o montava. Assim que chegou à pequena mansão na floresta, saltou do dorso do animal e correu em direção à porta pesada de carvalho, abrindo-a com estrondo.
- Preciso de falar com o Grão-Mestre! - Berrou a um servente, num francês fluído e cuidado.
Um homem com o topo da cabeça calvo, longas barbas onduladas brancas e alguns cabelos espessos no lado da cabeça também brancos aproximou-se. Deveria ter os seus sessenta e poucos anos, mas mantinha-se possante, numa túnica branca, com uma grande cruz vermelha ao peito.
- Meu caro Pierre, o que o traz aqui?
- Mestre Molay! - Exclamou o mais jovem, inclinando a cabeça respeitosamente, deixando os seus longos cabelos castanhos escorrerem-lhe pela testa e taparem-lhe os olhos lacrimosos. - O Papa Clemente V ordenou a dissolução da ordem. As nossas fortalezas estão a ser atacados. Fui enviado para vos avisar da tragédia. Brevemente as tropas do Rei chegarão para vos levar cativo...
- Eu, meu caro, não sou importante. Os tesouros da Ordem, esses sim, têm de ser protegidos. E vou dar-te um dos mais preciosos tesouros da Ordem dos Cavaleiros templários. Vem comigo.
O mais novo seguiu-o de perto, olhando em volta atento, procurando por inimigos nos recantos escuros da mansão. Jacques de Molay guiou o jovem até uma cave escondida habilmente, inserida na própria rocha que formava a floresta. Havia tesouros riquíssimos vindos de todo o oriente naquela sala. Mas o Grão-Mestre apenas lhe entregou um pequeno e pobre cofre de madeira com um selo de ouro e prata. No topo da tampa reluzia em marfim uma pomba habilmente trabalhada. A insígnia do Templário em prata era já um trabalho recente na parte da frente daquele pequeno cofre, mas era digno de admiração.
- Senhor, que é isto?
- Ficarás melhor se não saberes.... Mas a ignorância também mata. Quero que leves isso a quem sabe o quão valioso é. Vai até Lourdes, na base dos Pirenéus. Lá procura por um jovem português de cabelos castanhos e olhos cor de avelã de nome Dom Fernando da Rocha. Ele saberá o que fazer com o cofre, apenas dá-lhe esta minha mensagem. Mas esse tesouro tem de ficar a salvo.
Pierre acenou afirmativamente e voltou para o exterior. uma gota de água caiu-lhe na testa. Ajeitou a sua longa capa branca, abrigando-se da água e do vento e instigou o seu cavalo negro a correr de novo pela floresta, dirigindo-se para Sul. Os seus olhos e ouvidos estavam sempre atentos a qualquer movimento. Já nem mesmo no seu próprio reino estava a salvo. Agora, o seu inimigo era o rei Filipe. Uma traição que lhe trespassava o coração e, certamente, que entristecia também o Grão-Mestre da sua ordem. Oficialmente, os Templários já não existiam. Clandestinamente, continuavam unidos moralmente, apenas se haviam retirado para outras zonas mais seguras. Perguntava-se se deveria fazer o mesmo. Não, como mensageiro designado para levar informações entre o Grão-Mestre e os descendentes dos fundadores, Pierre tinha altos deveres a cumprir. Deveres divinos, ditado pelo próprio Senhor lá no alto.
Apertou mais contra o seu corpo a pequena caixinha de madeira. Uma pontada de curiosidade despertava-lhe a vontade de abrir o cofre, mas o Grão-Mestre dera ordens expressas para que aquele objeto fosse levado até Dom Fernando da Rocha. mas porquê? um Português? Sim, fazia sentido que não fosse um Francês. E de facto, os portugueses haviam sido um povo bravo na luta contra os Mouros, mas não eram uma não tão forte como Espanha, por exemplo, ou como Inglaterra.
- Pierre, não te preocupes, Jacques de Molay sempre soube o que faz... Não é agora que vai falhar.
E o cavalo galopava pela floresta que recebia agora nas suas folhagens os primeiros farrapos de noite escura, que morosamente se resignavam a assentar naquele local agora manchado pelas incertezas dos Templários.

sábado, 28 de maio de 2011

A Rosa Negra - Capítulo 5

Traída
Olho de novo para o indicador do tanque de gasolina. Estou quase a ficar sem combustível. Observo a paisagem que passa depressa. A estrada, finalmente, cruza-se com uma via rápida. Leio uma placa. Rejubilo ao reconhecer o nome de uma das localidades. A partir daquele local, sei ir até à sede da Scotland Yard. Agora acelero ainda mais, sentido a  respiração aumentar de ansiedade. Apanha-me de surpresa. O embate sem aviso agitou o carro por todos os lados. Pouco depois, voo pela berma. O meu carro está a virar-se de rodas para o ar. Um jipe continua a embater violentamente no meu veículo. Algo no meu peito me diz que é ele. Quando finalmente o meu carro para. Solto o sinto de segurança. Sinto a minha perna ferida e o meu pulso torcido latejarem. Rastejo para a parte de trás do carro virado do avesso. Vejo os seus pés caminharem em direção à porta do condutor. Ele abre-a. Eu saio pela porta de trás e corro o mais que posso em direção ao jipe, que tem as portas fechadas. Abro a porta, e rejubilo ao ver que ele deixara as chaves na ignição. Ah! Pensas que eu não sou dura?! Que me ias conseguir matar assim?! Não, meu caro! Estás a lutar contra uma mulher com treino militar. Ele corre na direção do jipe. O meu pé pisa o acelerador e o carro obedece instantaneamente, quase levando-o à frente. Olho para ele, fazendo uma careta de vitória, e volto a olhar em frente. A estada parece-me prometedora.

Chego já de noite à sede. A primeira pessoa que vejo é Frederic Gale, um dos novatos. Ele fica surpreendido ao ver-me ali. A sua mão moveu-se suspeitosamente para o seu coldre.
- Miss Stanley... - Chamou. - Não se mexa...
- O quê? - Perguntei, indignada. - Eu acabei de escapar ao Assassino da Rosa Negra! O únic sítio onde estou segura é aí dentro.
Ele aponta-me a arma.
- Que quer dizer? Temos provas de que a senhor é a Assassina...
Eu olho para ele, embasbacada.
- Só podes estar a brincar comigo, miúdo!
- Nós revistámos a sua casa... Encontrámos o resto do papel que a ex-marine tinha no bolso em sua casa...
- Mas eu nunca vi aquela mulher na minha vid... -Sinto o meu peito colapsar. - Oh meu deus... Ele esteve em minha casa...
Dou um passo em frente e oiço o clique da arma de Frederic.
- Eu não te vou fazer mal... Fui incriminada.
Mostro-lhe a perna. Ele olha para mim, indeciso.
- Achas mesmo que se eu fosse o assassino ia deixar em minha casa algo que me ligasse à vítima? E aposto que receberam um telefonema anónimo a darem-vos um empurrãozinho na minha direção...
Ele ergue uma sobrancelha.
- Bem me parecia. - Digo, arrastando-me até ao acento.
- Karen, põe as tuas mãos onde eu as possa ver... - Diz uma voz conhecida.
- Kyle... Também tu? - Pergunto, desiludida.
- Desculpa, tenho de seguir as leis. - ele aponta com a cabeça em direção às traseiras, onde ficam as celas.
Caminho para dentro de uma das celas. Nunca pensei ver as barras metálicas daquele lado...
- Não devias ter voltado aqui, querida...
Algo no meu âmago gelou. Aquela entoação daquela palavra, já a tinha ouvido antes. AS minhas suspeitas são confirmadas. Um toque de telefone. Aquele toque. O toque que eu ouvira antes de o Assassino atender.
- Cabrão! És tu! - Exclamei.
Ele pegou no telefone. Alguém falou. Ele acenou.
- Tenho de ir. Até logo, querida... - Despede-se, tal como o assassino fizera.
- Marshall, não vais sair impune disto! - Grito enraivecida.
Sinto o peso do mundo cair-me sobre os ombros. Estou a ser acusada de crimes atrozes que não cometi, e o meu colega, o meu parceiro, era o verdadeiro autor daqueles crimes. Faz sentido. Um polícia teria fácil acesso à minha morada. Ele podia muito bem ter-me tirado as chaves de casa quando me capturara. Só um polícia saberia que provas procuraria para não as deixar para trás e desvanecer-se como um fantasma. E afinal, que sabia eu de Marshall? Nada. Apenas que ele tinha começado a trabalhar comigo pouco depois de a ex-marine, a última vítima do Assassino da Rosa Negra, ter sido encontrada. Fazia sentido. Ele estava a assistir de perto à investigação, aos meus movimentos. E se eu, tal como ele, era uma polícia, então também eu poderia ser a Assassina.

Passaram meses. Enfrentei hoje o julgamento. Declararam-me culpada e sentenciaram-me a prisão perpétua. olho desgostosa para Marshall. Ele havia plantado todas as provas. Provavelmente teria guiado os polícias até à casa. Era uma das provas que haviam usado: O corpo de Tania, com uma bala da minha arma. As minhas impressões digitais na casa. Sangue das vítimas seco dentro da casa. Tinham um caso sólido contra mim. E agora, estou prestes a cumprir a pena de um assassino. Mas as coisas não vão ficar assim...

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A Rosa Negra - Capítulo 4

Lutadora
Passam-se algumas horas, antes de eu reparar no cheiro. Aquele cheiro que eu reconheço tão bem. O cheiro a morte. Olho em volta, tentando descobrir o cadáver. Os meus olhos, já habituados à penumbra, detetam lá ao fundo uma sombra. Tento mover a cadeira. O som da madeira a arrastar no chão irregular de betão fere-me os ouvidos. Quando finalmente chego perto do corpo, constato que é a Tania. Uma lágrima corre-me pelo rosto. Procuro pela bolsa que ela costuma trazer à cintura. Ainda lá está. Faço a cadeira girar, e tento tirar-lhe a bolsa. O meu objetivo é encontrar o canivete que ela trazia sempre consigo. Inclino-me um pouco mais. A cadeira perde o equilíbrio, caindo sobre o corpo. Sinto um dos meus pulsos torcer num ângulo duvidoso e trinco o lábio para trancar na garganta um grito de dor. Mexo-me mais um pouco. Encontro o fecho da bolsa. Tento, em vão, abri-la. As minhas pernas estão atadas à cadeira. Tento dobrá-las com toda a minha força, para fazer a madeira dos pés da cadeira ceder. Só mais um pouco...
Crack!!
- Aahhhh! - Grito, chorando de dor.
Havia conseguido partir as pernas da cadeiras, mas pago um grande preço por isso. Olho para baixo, gemendo ao ver um bocado de madeira espetado na minha perna. O sangue escorria-me pelas calças de ganga, quente e espesso. Inclino a cabeça para trás. Apesar das dores, tento erguer-me, passando as mãos por trás das costas da cadeira. Quando finalmente as minhas mãos se vêm livres das costas da cadeira, tento alcançar de novo a bolsa. É-me extremamente difícil abrir o fecho, pois não consigo vê-lo e ainda sinto o meu pulso latejar de dor. Mas a dor na perna trespassada sobrepõe-se rapidamente a tudo o resto. Zip. Consigo finalmente alcançar o interior da bolsa e tiro o canivete. Procedo então à árdua tarefa de cortar as cordas que me prendem as mãos.
Passam cerca de dez minutos até eu conseguir arrancar as cordas. Analiso o pulso. Não está inchado nem roxo, deve ter sido apenas um mau jeito. Olho para a perna. Felizmente, o bocado de madeira não espetou muito fundo. Arranco-o, trincando o lábio. O som da madeira roçar a carne é enjoativo. Olho em volta, mas tudo o que vejo são paredes de betão. Rastejo em direção à porta. Trancada! Volto a servir-me do canivete para arrombar a fechadura. A porta abre-se com um bem-vindo click. Arrasto-me com a perna ferida latejante pelas escadas que me parecem conduzir a uma casa. Abro o alçapão. Um tapete pesado cobre a abertura, dificultando-me o trabalho. Mas eu não posso desistir agora. Não, não vou deixar que o Assassino da Rosa Negra me entregue ao mesmo destino das sua vítimas. Se vou morrer, não o farei sem luta. Arrasto-me pela pequena sala. O meu sangue manchou o chão. Mas um assassino em série é uma mente bem ordenada. Sabe sempre como deixou as coisas. Procuro por algo com que possa limpar o chão e estancar a ferida. Encontro um velho lençol no topo de um armário e improviso. Depois de limpo o chão, volto a pôr o tapete tal e qual como estava antes de eu ter saído. Assim, terei o elemento surpresa quando ele voltar a casa. Encontro a minha arma numa arca num dos quartos pequenos. Dou-me ao luxo de observar a casa onde estou. É antiga, pouco usada, com chão em madeira, paredes cobertas de um papel gasto verde e decadente que deixa ver o cimento das paredes através de alguns rasgões. As janelas estão todas fechadas, assim como a porta de entrada. Tento espreitar lá para fora pelo orifício da porta. À minha frente está uma estrada, antiga de terra batida, e floresta à volta. Estou no meio do nada. Oiço o som de um carro. Ele vem aí!
Oiço atentamente os passos dele. Carrego a minha arma. A porta abre-se. Já vem encapuçado. Espera? Será que isso quer dizer que ele já sabe que eu estou livre? Não, ele continua a caminhar. Aponto a arma. Ele trava ao som do metal.
- Nem. Mais. Um. Passo. - Ordeno friamente.
- Mmmm... - Diz ele, com a voz distorcida por um aparelho preso à máscara. - És a primeira que consegue escapar.
- E serei a última que capturas-te, filho da mãe.
Ele olha para mim. Na sua mão pende uma Rosa Negra, a sua imagem de marca.
- A Rosa da Morte, é como lhe chamo. - Comenta.
Ele, num movimento rápido, aponta-me também a sua pistola. Ficamos num impasse. Que estás a fazer, parva? Dispara! click. O gatilho... Primo o gatilho mas a arma não dispara. Ele solta um riso diabólico.
- Achas mesmo que eu ia deixar-te o carregador cheio? Não sou parvo. Sugiro que voltes lá para baixo... - Diz-me, com uma voz gelada.
Baixo os braços. Não me vou deixar apanhar assim tão facilmente. Num movimento ágil e rápido, tiro o canivete do bolso e atiro-o. A lâmina espeta-se no seu ombro, a arma desvia-se, dispara e parte o vidro de uma janela da cozinha. Salto para cima do balcão, rebolo pelos estilhaços, sentido alguns cortarem-me os braços, caio na relva do exterior. De seguida corro acocorada até ao carro, e entro lá dentro. Não há chaves, como seria de esperar. Mas ainda tenho um truque na manga. Baixo-me e tento fazer ligação direta ao carro. O motor funciona. Arranco sem hesitar. As minhas mãos soadas escorregam no volante. Ele dispara novamente, partindo uma das janelas do carro. Sinto a bala arranhar-me a testa, dou meia volta ao carro e acelero pela estrada fora, sabendo apenas que me vai levar para longe dele.  

sábado, 7 de maio de 2011

Perto ao Longe

Sinto-o perto. Sempre, desde que o conheci. Sempre nos demos bem, sempre contámos confidências um ao outro. Mas nunca tive coragem de lhe contar o segredo que melhor guardo. Nunca tive coragem de lhe dizer o que realmente sinto por ele. Todos os dias o via chegar-se perto de mim, cumprimentar-me. Todos os dias tinha vontade de tocar os seus lábios com os meus, abraçá-lo ternamente, sussurrando ao seu ouvido o que sentia. Mas isso não poderia acontecer. Eu era um rapaz. E ele também. Eu tinha medo das palavras ásperas dos que nos rodeiam. Pior, tinha medo de perder a sua amizade se ele alguma vez soubesse o que sentia por ele. E sempre fui aguentando, porque ter a sua amizade, era sempre melhor do que não ter absolutamente nada. Um dia ele confessou-me que havia algo que o incomodava. Mas não me queria dizer o que era. E eu nunca iria a saber até mais tarde. Dois dias depois de me ter contado que algo o perturbava, ele foi a uma festa de uns amigos. Eu tinha um mau pressentimento. Nessa noite, não dormi. Na minha cabeça ecoavam os avisos que eu lhe tinha feito antes de ele sair de minha casa: "Não conduzas embriagado, ou com sono, ou drogado, melhor, não te drogues, por favor? Já não te peço para não beberes, mas pelo menos não conduzas se o fizeres.". Ele gracejou que eu parecia a sua mãe e saiu. Mas não havia meio de eu não ficar preocupado. Foi na manhã seguinte, a um sábado, tocaram à porta às nove. A mãe e o pai já tinham saído para ir às compras. Eu atendi a porta, pensado que eles se teriam esquecido de algo. Afinal era a mãe dele. Ela tinha uma olheiras negras e profundas, quase como covas de um cadáver em tardio estado de decomposição. Soube que ela era a mensageira da morte. Uma única palavra bastou. Não foi "morreu", nem sequer foi o seu nome. Foi o meu nome. Ela proferiu o meu nome, num suspiro solto, que ansiava por se libertar. Eu não consegui mexer-me. Ela esticou-me o braço, entregando-me um papel que trazia com ela. Era uma folha branca. Toquei-lhe. Não era um folha branca qualquer. Era daquelas folhas do bloco de desenhos dele. Já as conhecia pela textura sedosa. Olhei para o papel. As lágrimas já só me deixavam ver indistintamente a sua letra desenhada, redonda, direita. Finalmente, consegui ler o que ele tinha escrito.
"Dia 1. Contei ao meu melhor amigo que algo me preocupa. Ele perguntou-me o que era. Mas como posso eu, um rapaz, dizer a outro que... Que o amo? Ele provavelmente diria 'Sim, também te amo como a um irmão'. Mas não, não o amo como a um irmão. O amor que sinto por ele, é aquele amor que me faz querer abraçá-lo, sussurrando-lhe coisas românticas ao ouvido, beijá-lo ternamente quando ele precisar de apoio. Mas não quero perder a amizade que tenho com ele, que, apesar de não tão boa como o seu amor, é algo que me acalma esta dor, esta ansiedade... Que batalha decorre no meu coração... Tive de escrever, de desabafar... Não sei o que fazer..." O papel estava um pouco borrado. Era uma lágrima sua. "Quero tanto estar com ele... Só me apetece morrer. Mas tenho medo da morte... Da morte que sinto que se aproxima de mim a cada batimento do meu coração. Do meu coração que já não bate por mim, mas sim por ele. Amo-o. E quero tanto dizer-lhe isso. Mas não sei como."
Primeiro, perguntei-me a mim mesmo. Como foste capaz de não me dizer? Como foste capaz de me ocultar isso? Como foste capaz de beber demais, não seguir os meus conselhos e morreres num acidente estúpido de automóvel? Como fui eu capaz de te deixar ir, sem te dar aquele beijo, aquele abraço... Que agora ficam aqui perdidos, no tempo, nos "e ses" que atormentarão ternamente a minha vida. Abraços e beijos, que imagino dar-te, agora que olho para a lápide à cabeceira da tua sepultura. Estás perto... Mas tão longe... Inalcançável. Nunca mais voltarei a ouvir a tua voz, a ver o teu sorriso, a sentir o teu cheiro. Nunca mais poderei saber como era abraçar-te, ouvir o teu sussurro no meu ouvido, sentir os teus lábios tocar os meus. E assim, fica a minha vida dominada por tristes e melancólicas suposições, e imaginações e nostálgicas recordações de quem eras, mas já não és.

domingo, 1 de maio de 2011

A Rosa Negra - Capítulo 3

Atacada
- Temos um novo avanço no caso do Assassino! - Exclama Tania Glyde, a chefe do departamento de homicídios.
Ela é uma mulher fogosa, de cabelos ruivos encaracolados e entroncada. Apesar de agressiva para com os criminosos, é amável para nós. Entre os agentes, dizemos que ela é a Boudica e nós os celtas sob o seu domínio e proteção.
- Temos? - Interrogo, estupefacta.
- Parece que há uma testemunha ocular! - Informa, guardando o seu distintivo e a sua arma. - Vem comigo, vamos falar agora com ela.
Marshall abriu a boca, para dizer qualquer coisa, mas não lhe saiu nenhum som. Estava tão surpreendido quanto eu.
- Mas, isso é impossível! Ele foi sempre tão cauteloso... - Comenta, seguindo-me a mim e a Tania.
- Parece que não! - Replica a nossa chefe.
- Então vão vocês, eu tenho de fazer um telefonema! - Suplica, correndo para a sua secretária.
A casa é nos arredores de Londres. Uma casa simples de madeira, típica daquela zona. A chuva começa a cair, molhando a terra do campo já saturada de água.Tania e eu corremos para a casa, tentando escapar das gotas de chuva. Ela bate à porta, mas ninguém responde.
- Miss Saint-Lane?! - Chama, sem obter resposta. - Somos da Scotland Yard. Podemos entrar?
Ouço o ferrolho da fechadura arrastar-se pesadamente. A porta abre-se, revelando uma mulher de cabelos castanhos, dentro dos seus trinta anos, deitada no chão. Uma das suas mãos agarrava o pescoço. O sangue jorrava-lhe descontroladamente de um golpe na garganta. Eu e Tania acudimo-la, mas morreu-nos nos braços poucos segundos depois. Algo se moveu na outra ponta da casa.
- Eu vou lá. - Sussurra-me ela. - Cobre-me.
Ela tira a sua Glock do coldre, e eu imito-a, caminhando agachada. A casa cai num silêncio desconcertante. Parece que consigo detetar cada gota que bate no telhado da casa de um andar. O vento uiva por entre as traves antigas de madeira, adicionando ainda mais stress àquela situação. Sinto movimento atrás de mim. Uma mão enluvada prende-me o braço e outra tapa-me a boca antes que eu consiga gritar. Tania apercebe-se que algo está errado e gira sobre si mesma. A sua cara reflete surpresa. Ela aponta a sua arma ao meu atacante. Está prestes a dizer qualquer coisa, quando sinto a mão enluvada do atacante enrolar-se na minha, premindo o gatilho da minha arma, atingindo Tania entre os olhos. O estrondo faz-me dar um salto, e um círculo vermelho surge-lhe na testa em segundos. O sangue escuro corre-lhe pela cara, e o seu corpo cai inanimado. O atacante torce-me o braço, roubando-me a arma, e atinge-me com a coronha na nuca, fazendo-me perder os sentidos.

Quando acordo, estou num sítio completamente desconhecido. Estou amarrada a uma cadeira de madeira, no centro do que me parece ser um pequeno armazém. Sinto o chão de betão por baixo dos meus pés. Tento libertar-me, em vão. A minha boca está selada com um pedaço de fita adesiva, que me impede de gritar por ajuda. Um único raio de luz proveniente de um buraco no tecto ilumina uma pequena área à minha volta. O resto do sítio está oculto na penumbra. Deteto movimento atrás de mim.
- Não devias ter ido até àquela casa. - Diz uma voz distorcida por um aparelho eletrónico.
- Mm! Mmmmm! - Tento responder.
Ele caminha, sempre na escuridão, andando às voltas. Apenas consigo distinguir um vulto alto. Uma lágrima de frustração corre-me pela cara.
- Não chores, minha querida... Sei que há anos que andas atrás de mim...
Os meu olhos abrem-se de espanto e medo. Ele atira uma rosa para o chão, que caí em frente aos meus pés. As pétalas da flor são negras como a noite, frescas, ainda libertando o aroma tão característico. Fecho os olhos, tentando lembrar-me de alguma parte do caminho. Nada. Um telemóvel toca.
- Tenho de ir. Até logo, querida... - Despede-se friamente.
Oiço uma porta pesada de metal abrir e fechar atrás de mim. O Assassino da Rosa Negra tinha estado na mesma sala que eu. O meu coração bombeia-me o sangue rapidamente, enchendo-me as veias de adrenalina. Mas nem assim consigo libertar-me daquelas cordas apertadas.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

A Rosa Negra - Capítulo 2

Beco Sem Saída
- O último número que lhe ligou foi este aqui. - Informa o homenzinho baixo de cabelos escassos.
- Mm... Já contactaram o proprietário do aparelho com este número de telemóvel? - Interrogo.
- Já tentámos, mas parece que era de um aparelho descartável, que já não está ativo... - Revela.
- Então há boas hipóteses de que fosse o Assassino da Rosa Negra a última pessoa a ligar-lhe, correto? - Pergunto, ansiosa.
- Sim. Está aqui a morada da família. Talvez consiga descobrir mais alguma coisa se falar com eles.
Aceito o papel que me dá. O nome da Vítima é Susan Hale. Os seus pais são Mary e Joshua Hale. Olho para Marshall. Ele tira as chaves do carro do bolso e segue à minha frente para o exterior da New Scotland Yard.
A família Hale mora numa pequena casa em estilo francês, rodeada de flores, nos arredores de Londres. Respiro fundo, preparando-me para a carga emocional que é contatar com a família de uma vítima que, provavelmente, ainda não sabe que o seu ente-querido faleceu de forma violenta e humilhante. Marshall pergunta-me educadamente se quero mesmo fazer aquilo.
- Não quero, mas tenho de fazer, faz parte do trabalho. - Comento, abrindo a porta e caminhando para o alpendre.
Marshall toca à campainha. Demoram a responder. Uma mulher de idade avançada, de cabelos prateados e semblante austero abre a porta.
- Que querem? - Pergunta, grosseiramente.
- A senhora é... - Interroga o meu parceiro.
- Meredith Hale, quem quer saber? - Pergunta, esticando o pescoço para admirar o metro e oitenta de Marshall lá do fundo do seu pouco mais de metro e meio.
- Somos do departamento de...
- Somos da Scotland Yard, minha senhora. - Corto, lançando um olhar reprovador a Kyle. - Gostariamos de lhe fazer umas perguntas sobre a Susan.
- A minha neta? Que quer a polícia dela? - Interroga, surpreendida. - Ela é tão boa menina.
O orgulho na sua voz faz-me pesar ainda mais o coração. Nunca aprendi a lidar com esta situação. Ela dá-nos passagem, após mostrarmos os nossos distintivos dourados. Na sala, está um jovem sentado, a assistir à televisão.
- Avó, quem é? - Pergunta, desinteressado.
- São da polícia, querido. Querem fazer perguntas sobre a tua irmã...
- Da polícia? - Diz, erguendo-se.
O seu cabelo é curto e castanho, os seus olhos verdes fazem-me lembrar os olhos vidrados de Susan. Treta, já estou a desenvolver sentimentos pela vítima. Observo o jovem. Ele é entroncado, e veste uma t-shirt verde justa. Militar.
- De que departamento são? - Inquire, desta vez mais interessado. - A minha irmã não fez nada de mal.
- Somos do departamento de homicídios... - Revela Marshall, antes que eu tenha tempo de dizer algo mais. - Temo que a sua irmã faleceu hoje de madrugada, pela uma da manhã, em Londres.
A mulher idosa deixa cair a bengala, pondo a mão no peito. O homem, apesar de em estado de choque, corre a socorrer a sua avó. Depois de lhe trazer um copo de água, pede a Marshall e a mim para falarmos com ele em privado.
- O que é que aconteceu à Susie? - Pergunta, com voz trémula.
- Acreditamos que ela tenha sido assassinada por um serial-killer, a que chamamos o Assassino da Rosa Negra.
- Espera, esse tipo não tinha deixado de matar pessoas há um ano ou assim? - Diz, agitado.
- Sim. - Respondo. - Mas, a sua irmã corresponde ao padrão que ele seguia. E as circunstâncias do crime são as mesmas que outros crimes praticados pelo Assassino da Rosa Negra.
- Só queremos saber se ultimamente a sua irmã tem agido de forma estranha, ou se tem algum inimigo que lhe quisesse mal. - Afirma Marshall.
- Ela... Nestes últimos tempos parecia assustada. Anteontem recebeu um telefonema de um tipo qualquer que a deixou assustada, por isso pedi uns dias para ficar cá em casa com ela, para a proteger. Parece que não... - A sua voz falha-lhe, e os seus olhos húmidos deixam escapar uma lágrima que lhe corre por cada face. - Parece que não serviu de nada...
Acabamos por nos despedir dele, já que não conseguimos mais nenhuma informação relevante, para além de que a Susan se dava bem com toda a gente que conhecia. Mas, a mim parece-me que o Assassino da Rosa Negra deve estar desesperado por não matar há tanto tempo. Não era hábito dele ligar às vítimas antes de as matar. Sento-me ao volante, pensativa.
- Queres que eu conduza? - Oferece-se Marshall.
- Não... Obrigado. - Recuso. - Estava só a pensar... Há algo que não bate certo aqui...
Ligo o motor, ainda a matutar no caso. De algo eu tenha a certeza: o Assassino da Rosa Negra voltou a atacar.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

A Rosa Negra - Capítulo 1

Um Dia Como Todos os Outros
Uma. Duas. Quatro. Nove. Milhares. Finalmente. As nuvens ameaçam já há algum tempo despejar a sua carga líquida nas ruas Londrinas escuras. Mas aquele beco, outrora enegrecido pelas trevas, é agora iluminado pelas berrantes luzes vermelhas e azuis dos carros da Polícia. A fita amarela com letras pretas dava a mensagem de passagem proibida. Um detetive, meu parceiro, aproxima-se, vindo de um dos carros que acabara de chegar.
- Bom dia, Karen. - Cumprimenta, amigavelmente.
- Olá, Marshall. - Respondo, aceitado o copo de café que me oferecia.
Quando era nova, sempre preferira o chá. Muito britânico. Mas desde que Ryan Marshall, americano de nascença, começou a trabalhar comigo, tenho bebido mais café. Ajuda-me a não adormecer quando tenho casos para tratar a altas horas da noite. Lanço um olhar ao médico legista, que me revela o que está escrito nos papeis que tem na mão.
- Vítima do sexo feminino, entre os vinte e cinco e os trinta anos, morreu estrangulada, com ferimentos que indicam uma luta contra o atacante... Ah, e tem um traumatismo post mortem, o que, juntamente com o facto de não haver aqui sangue nenhum, indica que o corpo foi removido do local original do crime.
- Temos de nos apressar, antes que a chuva apague as provas. - Comenta Marshall, com o seu sotaque americano, dando-me passagem por entre dois veículos.
A mulher é loira, e está deitada de cabeça para baixo. Um dos seus braços repousa de uma forma retorcida em cima das suas costas, mostrando alguns cortes profundos, mas limpos. Agacho-me, colocando a luva fina de borracha.
- Tudo de acordo com o relatório... - Informo, virando a cara da vítima.
Os seus olhos verdes vidrados são perturbadores. Nunca me habituei aos olhos dos mortos.
- Provavelmente foi violada durante a noite. - Diz Marshall, olhando para o céu e estremecendo. - Odeio o vosso tempo.
- Eu também. - Retorquo, analisando a garganta da vítima. - Parece que tem a garganta inchada... Pode ser a causa da asfixia...
- Talvez seja melhor esperarmos pela análise do médico Legista, não?
- Espera, acho que consigo puxar... - Afirmo, pondo os dedos dentro da boca do cadáver.
Sinto algo fino tocar-me os dedos. Agarro-o e puxo. Parece um fio grosso, verde. O caule de uma planta? Espinhos cobertos de sangue coagulado surgem. O meu coração bate acelerado. Não pode ser. Não. Depois de tanto tempo. Não pode. Finalmente, o caule revela-se ser de uma rosa. Mas não uma rosa qualquer. Uma rosa negra, de pétalas cuidadas. Se não é ele, é um copiador, mas dos bons.
- Marshall...
- Isso é o que estoua  pensar Karen...? - Interroga.
- Sim... Liga para a sede. - Ordeno. - Diz-lhes que o Assassino da Rosa Negra está de volta.

O caos instala-se no edifício da New Scotland Yard. O departamento onde trabalho está agitado, como há muito já não o vira. O vil Assassino da Rosa Negra está de novo ao activo. Seis anos antes, durante cinco anos, duas vezes por mês, aparecia o corpo de uma jovem vítima, morta por estrangulamento, com uma Rosa Negra entalada na garganta. Nunca houve vestígios, e muito poucas pistas foram encontradas que apontassem para o Assassino. Tornou-se um dos mais temidos Serial-Killers, não só pela população, como também pela Scotland Yard. Marshall está neste momento a ligar à mulher dele. Ela encaixa no padrão do assassino. é loira de olhos verdes. Só uma das vítimas escapou ao normal. Encontrámos uma mulher de cabelos negros, morta nas mesmas condições, com a Rosa Negra na garganta. Mas ela fora uma lutadora. Era uma ex-marine, que lutou bastante contra o assassino. A única coisa que conseguimos foi um pedaço de papel com um número incompleto. Então, deu-se o intervalo de um ano. Pensámos que talvez ele fora ferido em combate e tivesse morrido, na melhor das hipóteses. Ou ficado inválido. Mas pelos vistos, tal não tinha acontecido. Ele voltara. Cinco longos anos procurei por ele, sem nenhuma pista. Mas desta vez, eu estava com o pressentimento que conseguiríamos descobrir algo.
- Já avisei a Tara. - Informa Marshall, guardando o telemóvel. - Ela vai levar o Cory para casa da mãe dela.
- Sim, o melhor é deixarem o vosso filho num local onde não corra risco... - Concordo. - Espero que voltem depressa os testes ao corpo... Acho que vou passar lá por baixo para dar uma olhada aos pertences da vítima, vens comigo?
- A caminho, vou só fazer mais um telefonema. - Avisa, agarrando no telefone fio da sua secretária.
- Vais ligar à amante? - Gracejo.
- Com um serial-killer à solta mas mantens o sentido de humor, hun? - Ri-se, revirando os olhos.

O Rapaz da Casa Amarela - Epílogo

A folha cai-lhe no cabeça, fazendo-o coçar os cabelos castanhos. Jaime olha para o homem que o acompanha.
- Então, que vamos fazer par a festa? - Pergunta Jaime, ansioso.
- Não faço a mínima ideia! - Responde Quim. - Acho que devíamos deixar o aniversariante escolher como quer passar o seu décimo aniversário, a passagem para a idade dos dois dígitos! Que te parece, Quico?
Olho para ele, pensativo. Dez anos. Parece-me realmente muito. Imenso, na verdade.
- Não sei! - Exclamo, esticando os braços. - Mas quero algo graaande. Enorme aliás!
Eles riem-se, olhando para mim com ternura. Dez anos. É muito tempo. Mas não tanto como doze. Quando eles casaram. E mais seis, quando eles começaram a namorar. O Pai Jaime e o Pai Quim já estão juntos à doze anos mais seis. E tal como o Avô Fred e o Avô Carlos, amam-se muito. Eu não entendo como um homem pode amar outro. Eu Só gosto de raparigas, aliás, até tenho uma namorada...
- Oh sim, temos de convidar a Belinha! - Informo, mencionando a minha namorada.
- Claro! - Replicam em uníssono.
Não. Não compreendo o amor. Mas nem mesmo o amor que um rapaz sente por uma rapariga. É apenas isso. Amor. Os meus dois pais amam-me. E amam-se. Não há problema nenhum nisso. Algumas pessoas da aldeia não gostam disso. Mas quem são elas? Velhas mexeriqueiras. Nada mais. Chapinho com o pé numa poça de água.
- Podíamos ir ao circo, não? Ouvi dizer que vai estar lá na cidade... - Comenta o Pai Quim.
- Sim, mas temos de convidar a Belinha. - Repito.
- Ela não pode faltar, não. - Confirma o Pai Jaime.
E assim caminhamos pela aldeia, sob o sol alaranjado de Outono, pensando como vai ser o dia de amanhã. O dia em que eu faço dez anos. Tanto tempo... Dez anos... Mas não tanto como doze mais seis. Como o tempo que o Pai Jaime e o Pai Quim estão juntos. E muito menos do que doze, mais seis, mais dezassete, mais três. O Avô Fred e o Avô Carlos já estão juntos há tanto tempo... Esse tempo todo, a amarem-se como se fosse o primeiro dia... Mas já lá vão doze, mais seis, mais dezassete, mais três anos, desde que se conheceram.

O Rapaz da Casa Amarela - Livro IV - Capítulo 2

Herói Escondido
Quim engole sofregamente o bocado de pão que acabara de mastigar. ele fita-me, com os seus olhos castanhos ainda húmidos.
- Então, vais-me contar porque é que te foste embora...? - Pergunta.
- Tu ias-te matando por minha causa. Se eu não tivesse aparecido, a tua avó ainda estaria viva e tu não te terias atirado daquela torre. - Afirmo, sentando-me na cadeira em frente a ele.
Ele olha para mim. Os meus olhos estão pregados no chão.
- Desculpa teres assistido à minha queda... Eu lembro-me de te ouvir chamar... - Comenta.
- Oh ele fez mais do que assistir... - Começa o meu pai.
- Pai! - Corto. - Agora não, por favor.
Frederico deteta o olhar confuso de Joaquim.
- Não lhe contaste? - Pergunta, escandalizado.
- Não me contou o quê? - Interroga Quim.
Araújo contorce-se, desconfortável. O sobrinho dele percebe que estamos a esconder-lhe algo. Quim ergue-se.
- O que é que me estão a esconder.
- Quem te salvou a vida. - Revela Araújo. - Mas é melhor explicares-lhe tu, Jaime.
Eu olho furioso para o velho. Eu não quero recordar aquilo que se passara um ano antes, no campanário da Igreja. Não quero relembrar a dor... A dor psicológica e física.
- Conta-me, por favor. - Suplica Quim.
Eu suspiro, preparando para lhe contar o que se passara naquela noite.
- Eu fui ter contigo à Igreja, e vi-te lá em cima. Corri que nem um desalmado para lá chegar antes de te atirares. Quando finalmente alcancei o topo, já te estavas a soltar. Eu chamei por ti, e segurei-te o braço. Bateste com o peito na parede da torre, e perdeste os sentidos... A tua mão começou a escorregar, e eu não estava a aguentar contigo, por isso... Atirei-me, envolvi-te com os meus braços, e quando atingimos o chão, rebolei, para dissipar alguma energia... Ainda assim tu partiste uma perna e eu parti uma perna e desloquei um ombro...
Sinto uma lágrima escorrer pela minha face, ao relembrar-me do que sentira, do ar a passar pelo meu corpo, do meu estômago parecer subir-me à garganta.
- Porque é que... Porque é que o fizeste? - Sussurra Quim, pegando-me na mão.
- Porque não suportava a ideia de te ver ali, caído, morto no chão, sabendo que pelo menos poderia tentar alguma coisa para te ajudar...
- E porque te foste embora quando eu mais precisava de ti?
- Tu... Eu... Não sei... Não te queria fazer sofrer mais do que fiz... - Digo, olhando para o tecto.
- Tu não me fizeste sofrer... Nem tu nem ninguém. Foi apenas obra do destino. Mas eu preciso de ti. Preciso do teu apoio, do teu abraço... Eu amo-te, Jaime...
Araújo endireita as costas com aquela revelação. É-lhe ainda difícil de enfrentar o facto de que o seu sobrinho nutre aquele sentimento por outro rapaz. 
Eu envolve-lhe o pescoço com os braços, puxando-o para mim, beijando-o carinhosamente. Quim corresponde, acariciando-me a cara e os cabelos. O beijo é interrompido por alguém a entrar de rompante na pequena cozinha.
- Cristo! Frederico! Eu estava preocupado! Disseram-me que tinhas vindo para aqui! O que é que se passou, querido?! - Exclama o Pai Carlos.
A sua voz morre num beijo caloroso dado por Frederico, que o faz corar. Carlos olha em volta e apercebe-se do que se passara.
- Como estás, Quim? - Pergunta, amigavelmente.
- Muito bem. Melhor do que nunca. - Afirma, olhando para mim com um sorriso rasgado.
- Vocês deviam ter dito o que se passou. - Comenta o Pai Carlos. - Têm noção e que deixaram a Laika sozinha em casa?
- Oh, onde é que ela está? - Interrogo, preocupado.
- Trouxe-a comigo. Está no quintal a brincar com o Pluto... Acho que aqueles dois estão a seguir o exemplo dos donos... - Responde, rindo-se. - Mas fico feliz por vocês.
Araújo ausenta-se, dizendo que se vai deitar. Os meus pais avisam que vão dar um passeio pela aldeia, antes de voltarem à Casa Amarela. Eu fico ali, sentado, olhando para Quim. Ele volta a beijar-me, desta vez mais calorosamente. Sinto a saudade nos seus lábios que se movem em uníssono com os meus, transparece o desejo na sua língua que toca a minha timidamente, demonstra carinho nas suas mãos que percorrem lentamente o meu corpo. Ele quebra o beijo, encostando a sua testa à minha.
- Quero que isto nunca mais acabe. - Diz, mantendo os olhos fechados, como que fazendo um desejo. Quando os abre, fixa-os nos meus. - Promete-me que não te voltas a ir embora... Por favor, promete.
- Eu prometo. Nunca mais vou ficar longe de ti. - Afirmo, beijando-o novamente.

terça-feira, 26 de abril de 2011

O Rapaz da Casa Amarela - Livro III - Capítulo 3

A Casa Amarela
Observo o pequeno cordeiro que adormecera no meu colo. O Ti Araújo observa o céu. Ele, tão bem como eu, sabe que dia é hoje. Um ano. Faz hoje exactamente um ano que a Avó faleceu. Faz hoje um ano que eu me tentei atirar do campanário da Igreja. E há um ano que não os vejo. Nem o Frederico, nem o Carlos, nem o... Jaime. Pura e simplesmente desvaneceram-se da aldeia. E sempre que tento trazer o assunto ao de cima, ninguém me diz nada. Ou ficam calados, ou desviam a conversa, fingindo que não sabem de quem estou a falar. Acaricio a lã macia do animal, encostando a cabeça ao tronco.
- Quim. Anda lá, a missa em honra da alma da Alzira deve estar quase a começar...
- Sim, Tio... Eu vou já, podes ir andando.
Ele arrasta-se, cansado e velho, pelo campo, seguido de perto por Pluto. Observo a Lua, fraca, apagada pelo Sol que se ergue alto naquela tarde de Segunda-Feira. Arregaço uma das mangas da camisa negra, que deslizara até ao meu pulso. O antigo caminho de terra batida que leva à Igreja serpenteia à minha frente, e percorro-o, vagarosamente.
A cerimónia havia começado minutos antes. Passou, lentamente, tal como o meu estado de espírito. Finalmente, o Padre Joaquim começou a citar a sua homilia.
- Hoje estamos aqui reunidos para recordar alguém. Alguém cujo nome era conhecido por muitos, amado por todos. Alzira, carinhosamente tratada entre a sua família - ouve-se um burburinho e oiço alguém comentar que tinha sido a família que a matara. - sempre foi uma mulher de carácter forte, justo e honesto.
Justo. Justo? É justo o que ela me está a fazer passar? Não, Quim, não a culpes... Ela morreu por tua culpa.
- Caminhei muitas vezes lado a lado com ela, discutindo sobre como decorar a igreja para as festas, como melhorar a vida aqui na aldeia. Ela sempre se mostrou disponível para tudo isso. Mas há um ano atrás, mesmo em frente a esta mesma Igreja, o seu coração frágil de anciã bateu pela última vez. Ela era uma amiga, um irmã, uma... - O Padre hesita, olhando para mim, fitando-me com os seus olhos expressivos e húmidos. - uma avó. Palavras duras saíram da sua boca. Palavras que ela certamente se arrepende de ter dito, palavras que poderiam ter destruído mais uma vida, para além da dela...
O meu coração contorce-se, o meu estômago dá um nó. Não aguento e sinto a água escorrer-me pelos olhos. Giro sobre os meus calcanhares, saí a correr da Igreja, chorando. Corro, sem destino. Corro para me escapar. Salto o muro. A porta emoldurada pela parede amarela barra-me o caminho, mas pontapeio-a com todas as minhas forças, que já são poucas. Ela cede, dando-me passagem. Atravesso a cozinha, subo as escadas e entro de rompante no quarto dele. No quarto agora vazio de Jaime. É a primeira vez em doze meses que volto a entrar naquela casa assombrada pela alegria outrora ali vivida. Ajoelho-me no chão, soluçando, gemendo.
- Porque te foste embora?! Porque me abandonaste quando precisava de ti! Todos me abandonaram! Deus, a minha Avó, Jaime! Que mal fiz eu! - Berro. - Que mal fiz eu...?
A minha voz morre-me na garganta e encolho-me, chorando. Nunca me disseram como sobrevivi à queda. Apenas me disseram que foi a sorte. Mas eu lembro-me da voz. A voz dele chamar pelo meu nome. É  única coisa de que me lembro. Jaime a chamar por mim. Fecho os olhos. Tudo o que posso ver são so seus olhos verdes, alegres. Jaime a correr em frente a Laika, a sua cadela Serra-da-Estrela. Vejo-o sentado na cama, à minha frente, contando-me como eram as coisas em Lisboa. Recordo-me de lhe ensinar onde estavam as constelações, nas noites quentes do Verão que ele cá passara. Sinto de novo o seu corpo quente sob o meu, naquela noite em que entrei pela sua janela, trepando pela árvore perto da Casa Amarela. A voz dele, grave, sábia, alegre, enche-me os ouvidos. Mas é abafada pelos gritos da minha avó.
Larga-me, Larga-me! Ai, que me morro aqui!
O seu corpo inerte, caído na poeira em frente à igreja. Encolho-me ainda mais, deixando-me cair no chão, em posição fetal. A minha testa toca os meus joelhos que tremem. Estou sem apoio, sem ninguém. A solidão avassaladora invade-me o corpo, toma-me a alma, corrói-me o ser.
Sinto um patinhar tímido perto de mim. A língua húmida de Pluto lambe-me a orelha, fazendo-me cócegas. Soluço, abraçando-me ao seu pescoço enquanto ele gane. Os seus olhos tristes e castanhos observam-me, desesperados por me ajudar.
- Está tudo bem, rapaz, eu estou bem. Não há problema. Vai ter com o Tio. Ele precisa de ajuda com as ovelhas. Eu fico bem. Vai.
Ele caminha para a porta do quarto, hesitando. Vira-se para trás, ladrando-me gentilmente. Aceno-lhe com a cabeça e ele saí, de orelhas em baixo, cabeça caída e cauda entre as pernas. Espero até ter a certeza que ele se foi embora. Não quero que o único amigo que me resta me veja assim vulnerável. Uma lágrima escorre-me pela face. Volto a deitar-me, enroscado em mim mesmo. Nem mesmo a dor da foice a dilacerar a minha pele quando ainda era novo é mais forte que esta dor no meu peito. Já não tenho forças para chorar. As minhas pálpebras pesam-me. Adormeço. Os sonhos depressa me atormentam.
Corro. Estou quase a chegar à Igreja. Mas a avó já está caída no chão. Os seus olhos abrem-se, a sua boca abre e fecha, como um peixe fora de água. A sua voz ecoa, gritando-me para eu a soltar, insultando-me, por a ter morto. "Acabaste com a minha vida, seu bastardo, és uma maldição. És o Demónio, estás possuído. Naquela casa caminha a Besta como caminha Deus no céu!", berra, enchendo a minha cabeça que parece querer explodir. Choro. Grito pelo primeiro nome que me ocorre. "Jaime! Jaaaaaaaime! Voltaaaa!!" mas ele afasta-se cada vez mais sem olhar para trás. Laika caminha ao seu lado, puxando Pluto consigo. O Tio afasta-se também, levando consigo o meu cordeiro. Carrega-o às costas como uma mercadoria. Olha para mim, sorrindo sadicamente. "Matas-te a minha irmã, agora sofre as consequências!". Volto a gritar pelo seu nome, chorando. "Jaime! Jaime! Por favor! Jaime!". Ele surge ao meu lado, tocando-me no ombro. Chama pelo meu nome. "Meu Deus, Quim! Joaquim!"
- Amor, acorda!

O Rapaz da Casa Amarela - Livro IV - Capítulo 1

Desaparecido
Tic. Tac. Tic. Tac. Tic. Ta...
- Filho, anda almoçar. - Chama o Pai Fred, interrompendo o relógio.
- Argh, que tédio! - Exclamo, sentando-me à mesa. - O pai Carlos, ficou de novo a trabalhar até tarde?
- Sim... Teve de ser... Mas deve estar mesmo aí a chegar. - Diz, tentando convencer-se a si próprio.
- Sim... Deve estar.
Comemos em silêncio, apenas olhando de vez em quando um para o outro. Laika também está a comer a sua refeição, na cozinha, junto aos meus pés. Olho para o calendário. Um ano. O meu pai apercebe-se onde está pousado o meu olhar.
- Filho...
- Tenho tido um mau pressentimento... Pai... Sonhei que ele... Sonhei que o Quim tinha mesmo... - Um soluço interrompe-me, e as lágrimas correm-me pelos olhos.
O Pai Frederico salta da cadeira, contornando a mesa e abraçando-me ternamente.
- Pronto, está tudo bem, ele está bem, filho.
- Como podes ter a certeza?! Há um ano que não temos notícias. Um ano de incertezas e de dor!
O telefone toca. O meu pai ergue-se, certificando-se de que estou bem. Ele pega no aparelho e atende.
- Estou, sim, quem fala?
Oiço um sussurro vindo do auscultador, mas não percebo nada. No entanto, o meu pai começa a demonstrar sinais de surpresa e de pânico.
- Meu Deus... E encontraram-no...? Não?
Comecei a temer pelo pai Carlos.
- Ok, Araújo, tenha calma, sim, eu vou para aí. Sim, já.
Um ano tinha passado antes de ouvir aquele nome. É o tio de Quim. O meu peito aperta-se. Algo estava errado. Algo estava muito errado.
- Filho, mantem a calma... - Pede o meu pai, com voz trémula. - Mas esta manhã, deram uma missa em honra da Dona Alzira. O Quim estava lá, mas saiu a meio a chorar e a correr. Ainda não o encontraram e ninguém sabe onde está...
Levanto-me de um salto, agarro no meu casaco e no meu telemóvel.
- Então de que estás à espera! Vamos!
A viagem de carro dá cabo dos nervos aos dois. Primeiro porque temos medo de chegar tarde demais, depois porque não queremos abusar da velocidade na estrada. Três horas depois, começo a ver a entrada da Vila. Não se vê ninguém nas ruas. O meu pai para o carro em frente à casa. A casa de Alzira. Entro, sentindo o cheiro a velas e incenso.
- Frederico, ainda bem que pôde vir. Estamos desesperado. A vila anda toda à procura dele, mas ninguém o descobre. - Diz Araújo, saindo da cozinha.
Discutimos um pouco onde ele poderá estar, e procuramos em seguida. Percorremos a vila de uma ponta a outra, mas nada nos dá pistas onde ele possa estar. O meu medo de que ele se queira matar de novo enche-me a alma. Não o quero perder. Prometo a mim mesmo que depois disto moverei montanhas para estar com ele. A noite começa a cair e voltamos a casa de Araújo. O homem idoso está sentado numa poltrona, respirando com dificuldade. O meu pai tenta acalmá-lo. Sento-me no chão, meditando. Sinto um corpo quente atrás de mim. Viro-me, olhando para o enorme Pastor alemão castanho que me olha, suplicante.
- Pluto... Anda cá, rapaz. - Chamo carinhosamente.
Ele aproxima-se, deixando cair algo no chão, que trazia na boca. Olho para o que ele deixara no soalho.
- Oh, meu porco agora andas a arrancar bocados de azulei...
Reconheço o padrão. Reconheço a forma. Não era um azulejo, mas sim um fragmento de porcelana. Uma porcelana branca pintada de azul. Numa das brincadeiras com Pluto e Laika, dento de casa, eu tinha dado um encontrão àquela jarra. Para esconder as provas, enterrara-a no jardim das traseiras.
- Cristo, já sei onde ele está! - Grito, levantando-me após se ter feito luz na minha cabeça.
Corro como um doido colina acima, na direção da Casa Amarela, que outrora me pertencera. Trepo pelo portão, e passo pela porta arrombada. Oiço alguém lá em cima. Aquela voz, que tão bem conheço, a gritar pelo meu nome.
- Jaime! Jaime! Por Favor! Jaime!
Entro no meu antigo quarto. Ele contorce-se num pesadelo.
- Meu Deus! Quim! Joaquim! Amor, acorda!
Ele abre os olhos, de repente. Olha em volta. Envolvo-o com os meus braços. ele descarrega mais lágrimas nos meus ombros, apertando-me contra o seu corpo quente. Pluto entra no quarto, seguido de Araújo e do Pai Fred. eles entreolham-se, aliviados.
- Deixaste-me tão preocupado... - Comento, dando-lhe um beijo leve na orelha.
- Jaime... - Chama, com voz rouca... - Porque te foste embora... Nunca mais me deixes... Preciso tanto de ti...
- Eu sei, eu sei... Perdoa-me... - Suplico. - Mas vens comigo primeiro, comer e beber qualquer coisa e depois respondo a todas as perguntas que tiveres... Não me vou embora, prometo.

domingo, 24 de abril de 2011

O Rapaz Da Casa Amarela - Livro III - Capítulo 2

Memórias de um Coração Choroso
Observo as estátuas da igreja. O meu tio saiu há pouco tempo. O meu coração bate vagarosamente. As memórias correm-me pela cabeça.

Choro desalmadamente, ao sentir a lâmina dilacerar-me as costas. O Ti Manel agarra-me, gritando desesperado pelo que acontecera. Primeiro levam-me para dentro da casa, tentando parar o sangue enquanto esperam pela ambulância. Ficam preocupados quando o meu choro começa a esmorecer. Já mal tenho forças para soluçar. O ardor percorre-me as costas inteiras. A minha avó entra pelo quarto adentro, berrando.
- Que fizeram ao meu menino?! Ao meu querido menino? Que lhe fizeram?!
Ela chora, e faz-me chorar. Finalmente o médico chega. A minha avó pede para ele me curar. Ele diz que tem de cozer a ferida, mas que não há tempo para esperar que a anestesia faça efeito. A minha avó grita-lhe para não me fazer sofrer mais. Arrastam-na para fora do quarto. Sinto cada picada da agulha do médico. Mas já não tenho forças para gritar.

Estou numa sala branca. É o hospital para onde me levaram depois de me terem cosido. Mas desta vez, estou mais crescido. Foi quando torci o calcanhar a saltar nas rochas do rio. Vejo a minha perna suspensa. O ti Araújo entra, seguido da minha avó, preocupada. Sorrio-lhe para a acalmar, enquanto ela enterra a sua cabeça no meu peito, chorando.

Vejo o Ti Araújo à minha frente. Estamos na casa da árvore acabada de construir. A minha avó chama-nos lá em baixo, para irmos lanchar. Mas nenhum de nós se mexe. Temos medo que alguma coisa caia. Sou o primeiro a erguer-me. A tábua cede e caio no chão, magoando um braço. Rebolo-me no chão queixando-me, com lágrimas nos olhos.
- É bem feito, que é para ver se aprender, palhaço! - Exclama a minha avó, rindo-se. - Agora vê lá se te recompões!
levanto-me e sigo-a. Ela dá-me uma fatia generosa de bolo com chocolate.

Caminho pela igreja vazia. Um soluço escapa-me. Vou para o meu local preferido. A torre do sino. Sento-me com as pernas penduradas lá para fora, encostado ao sino.

A Clarinha pede-me um beijo. Olho para ela, escandalizado.
- Aqui, na casa de Deus? - Pergunto, indignado.
- Sim... Ele não se importa! O meu pai e a minha mãe também o fazem.
- Está bem...
Os nossos lábios tocam-se timidamente. O sino toca, sobressaltando-nos. Ela grita de medo e começa a chorar. Eu seguro nela e levo-a lá para baixo. A minha avó já lá está à nossa espera, com cara de poucos amigos.

Lá em baixo, posso imaginá-la a ralhar-nos. Um pouco mais à frente é onde ela tombou esta manhã. Tombou para nunca mais se levantar. Deus, perdoa-me. Hoje uma alma foi ter contigo por minha causa. Não quero ir para o Inferno. Mas que mundo é este onde todos me olham como se eu não merecesse sequer falar contigo? Não quero ficar na terra. Não quero ficar neste Inferno. Ergo-me, segurando-me com uma mão ao pilar. Fecho os olhos. Oiço alguém correr. Oiço uma porta bater. Leva-me contigo. Preciso de falar com ela. Não quero viver sem ela. Preciso de fazer as pazes com ela. Preciso de lhe dizer que nunca mais vou pecar.
Os passos ficam mais perto. Gritam o meu nome. Deixo os meus pés escorregarem. mantenho os meus olhos fechados. Sinto o vento nos meus cabelos. Sinto a gravidade deixar de fazer efeito. O chão aproxima-se, consigo senti-lo. E o meu peito atinge-o. Tudo fica negro.

sábado, 23 de abril de 2011

O Rapaz da Casa Amarela - Livro III - Capítulo 1

Salvai-me do Pecado
O burburinho da igreja é me tão familiar... Todos os domingos, toda a aldeia lá vai. Conheço todos. Todos me conhecem. Mas há algo de diferente em mim. A Avó ontem esteve a falar... Não, a discutir comigo, sobre o Jaime. Ela não quer que eu o veja. Ela repugna aquilo que os pais dele são, aquilo que ele é... Aquilo que eu sou. Não. Não posso ser. Estou confuso, assustado. Mas Deus é claro como água. Aquilo que eu fiz... Os desejos que tenho...
Senhor, tende piedade mim... Senhor, tende piedade porque pequei contra Ti, salvai-me do pecado, salvei-me do fogo do inferno, limpai a minha alma destas profanidades. Ajudarei todos. Sempre o fiz, e continuarei a fazê-lo. Por favor, ajudai-me a ser mais forte que o meu corpo, tornai o meu espírito apto a resistir aos desejos da carne. Sou um mero humano, mas dai-me forças.
Lá está ele. Arranjado para a missa. Camisa azul clara, com as mangas dobradas, calções brancos, ténis azuis. Os seus cabelos castanhos, como sempre, estão cuidados. Rezo uma vez mais para que Deus me dê força.

Depois da missa, as pessoas cumprimentam-se, falando sobre os acontecimentos banais da vida quotidiana. Apresso-me a sair dali, de mãos nos bolsos. Sinto alguém puxar-me o braço. A sua mão suave é-me familiar.
- Quim! - Exclama. - O que se passa?
- Olá Jaime. Não se passa nada. Não se devia ter passado nada. - Suspiro, libertando-me.
- Que queres dizer? - Pergunta, irrequieto.
- Isso mesmo que ouviste. Foi um erro. - Digo por entre dentes, olhando para o chão.
- Afasta-te do meu neto. - Rosna a minha avó, puxando-me pelo braço.
Eu segui-a, caminhando ao lado dela.
- Que é que o filho dos Infernos te queria? - Pergunta, indignada. - Não me digas que se estava a fazer a ti! É já uma lambada da esquerda que nem sabe donde veio a direita!
- Avó! Pára! - Exclamo. - Que mal te fez ele?!
Ela fica a olhar para mim, com os seus olhos pequeninos e a sua boca desenhando um "o".
- Agora és insolente comigo? - Interroga, chamando a atenção de alguns olhares.
- Não é nada disso! Mas o Jaime, o Frederico e o Carlos não te fizeram mal, porque os tratas assim?! - Exclamo.
Ela olha-me surpreendida. Oh não... Acabei de lhe contar que tinha estado naquela casa. Acabei de admitir o que fiz.
- É esse o nome daqueles demónios?! - Exclama, cuspindo no chão. - Fica sabendo que quem pôs pé naquela casa, não é digno de entrar nos meus terrenos!
O meu peito parece comprimir-se num único ponto, e explodir de uma vez. Dou um passo atrás, pois as suas palavras atingem-me como uma chapada.
- Estás a dizer que...
- Sim, estou a dizer que em minha casa não entras! Não enquanto não me saíres daquela igreja sem pecado no corpo!
- Dona Alzira, Dona Alzira, tenha calma! - Socorre o Padre Joaquim, que fora chamado à atenção pelos gritos da minha avó.
- Não tenho calma não! A Besta está a levar o meu neto! - Diz, com lágrimas nos olhos.
- Avó, tenha calma, olha o seu coração! - Aviso, preocupado, segurando-a nos ombros.
- Não me toques! - Grita, sacudindo-me. - Não me toques! Não me toques! Ai que me morro aqui!
A sua mão aperta-se contra o peito e caiu de joelhos, amparada pelos braços do Padre. Ouço a voz de Jaime gritar para chamarem uma ambulância. Uma voz feminina com sotaque britânico que eu nunca ouvira pede às pessoas para se afastarem e lhe darem espaço para respirar. Ela ajuda o Padre a segurar a minha avó. O meu corpo tenta mexer-se para a amparar, mas na minha cabeça a sua ordem impede-me de o fazer. Não me toques, não me toques, não me toques! A rejeição entranha-se-me no peito. As sirenes ouvem-se momentos depois. A multidão começa a dispersar e eu caminho para a igreja, sem saber o que fazer. Ajoelho-me, apoiando as mãos no altar.
Cordeiro de Deus que tiras o pecado do mundo tem piedade de mim.
Confesso a Deus, todo poderoso, que eu pequei, muitas vezes, por palavras... actos... omissões... Por minha culpa... - as lágrimas escorrem-me pelos olhos que retêm a imagem da minha avó caída. - minha tão grande culpa, peço aos anjos e santos e a vós irmãos... - na minha mente vejo a cara sorridente de Jaime. - Que rogueis por mim a Deus, nosso senhor.
Em nome do pai, do filho e do Espírito Santo, como era no princípio... - Vejo-me a brincar inocentemente com Pluto, a aprender coisas com o ti Araújo. - agora e sempre, amén.
Durante o resto dessa tarde, rezo mais. Não se ouve ninguém entrar na igreja, nem mesmo o Padre voltou para fechar os portões. Quando finalmente oiço passos é o Ti Araújo.
- Que Deus... - Diz, entre soluços - Que Ele... Tenha a... sua alma em paz...
Irrompo em lágrimas e soluços, agarrando-me ao meu tio.
- Não! Não! Não! Não! Que fiz eu! Que fiz eu! - Grito, ouvindo o eco da minha voz distorcida. - Que fiz eu!?
- Não, Quim, não foste tu. Tu não tiveste culpa... - Acalma-me, aconchegando-me.
Já não consigo articular palavras. Agora só consigo libertar gritos de dor, uma dor que me dilacera o Espírito, uma dor que me destrói o coração. Aperto mais o corpo do meu tio contra mim. Por momentos desejo que aquele fosse o corpo de Jaime. Grito de novo, frustrado comigo mesmo. As últimas palavras esfaqueiam a minha mente, espezinham-na. Só consigo ouvir a sua voz gritar para não lhe tocar, enquanto cai inanimada no chão, nos braços do Padre.