quinta-feira, 28 de abril de 2011

A Rosa Negra - Capítulo 2

Beco Sem Saída
- O último número que lhe ligou foi este aqui. - Informa o homenzinho baixo de cabelos escassos.
- Mm... Já contactaram o proprietário do aparelho com este número de telemóvel? - Interrogo.
- Já tentámos, mas parece que era de um aparelho descartável, que já não está ativo... - Revela.
- Então há boas hipóteses de que fosse o Assassino da Rosa Negra a última pessoa a ligar-lhe, correto? - Pergunto, ansiosa.
- Sim. Está aqui a morada da família. Talvez consiga descobrir mais alguma coisa se falar com eles.
Aceito o papel que me dá. O nome da Vítima é Susan Hale. Os seus pais são Mary e Joshua Hale. Olho para Marshall. Ele tira as chaves do carro do bolso e segue à minha frente para o exterior da New Scotland Yard.
A família Hale mora numa pequena casa em estilo francês, rodeada de flores, nos arredores de Londres. Respiro fundo, preparando-me para a carga emocional que é contatar com a família de uma vítima que, provavelmente, ainda não sabe que o seu ente-querido faleceu de forma violenta e humilhante. Marshall pergunta-me educadamente se quero mesmo fazer aquilo.
- Não quero, mas tenho de fazer, faz parte do trabalho. - Comento, abrindo a porta e caminhando para o alpendre.
Marshall toca à campainha. Demoram a responder. Uma mulher de idade avançada, de cabelos prateados e semblante austero abre a porta.
- Que querem? - Pergunta, grosseiramente.
- A senhora é... - Interroga o meu parceiro.
- Meredith Hale, quem quer saber? - Pergunta, esticando o pescoço para admirar o metro e oitenta de Marshall lá do fundo do seu pouco mais de metro e meio.
- Somos do departamento de...
- Somos da Scotland Yard, minha senhora. - Corto, lançando um olhar reprovador a Kyle. - Gostariamos de lhe fazer umas perguntas sobre a Susan.
- A minha neta? Que quer a polícia dela? - Interroga, surpreendida. - Ela é tão boa menina.
O orgulho na sua voz faz-me pesar ainda mais o coração. Nunca aprendi a lidar com esta situação. Ela dá-nos passagem, após mostrarmos os nossos distintivos dourados. Na sala, está um jovem sentado, a assistir à televisão.
- Avó, quem é? - Pergunta, desinteressado.
- São da polícia, querido. Querem fazer perguntas sobre a tua irmã...
- Da polícia? - Diz, erguendo-se.
O seu cabelo é curto e castanho, os seus olhos verdes fazem-me lembrar os olhos vidrados de Susan. Treta, já estou a desenvolver sentimentos pela vítima. Observo o jovem. Ele é entroncado, e veste uma t-shirt verde justa. Militar.
- De que departamento são? - Inquire, desta vez mais interessado. - A minha irmã não fez nada de mal.
- Somos do departamento de homicídios... - Revela Marshall, antes que eu tenha tempo de dizer algo mais. - Temo que a sua irmã faleceu hoje de madrugada, pela uma da manhã, em Londres.
A mulher idosa deixa cair a bengala, pondo a mão no peito. O homem, apesar de em estado de choque, corre a socorrer a sua avó. Depois de lhe trazer um copo de água, pede a Marshall e a mim para falarmos com ele em privado.
- O que é que aconteceu à Susie? - Pergunta, com voz trémula.
- Acreditamos que ela tenha sido assassinada por um serial-killer, a que chamamos o Assassino da Rosa Negra.
- Espera, esse tipo não tinha deixado de matar pessoas há um ano ou assim? - Diz, agitado.
- Sim. - Respondo. - Mas, a sua irmã corresponde ao padrão que ele seguia. E as circunstâncias do crime são as mesmas que outros crimes praticados pelo Assassino da Rosa Negra.
- Só queremos saber se ultimamente a sua irmã tem agido de forma estranha, ou se tem algum inimigo que lhe quisesse mal. - Afirma Marshall.
- Ela... Nestes últimos tempos parecia assustada. Anteontem recebeu um telefonema de um tipo qualquer que a deixou assustada, por isso pedi uns dias para ficar cá em casa com ela, para a proteger. Parece que não... - A sua voz falha-lhe, e os seus olhos húmidos deixam escapar uma lágrima que lhe corre por cada face. - Parece que não serviu de nada...
Acabamos por nos despedir dele, já que não conseguimos mais nenhuma informação relevante, para além de que a Susan se dava bem com toda a gente que conhecia. Mas, a mim parece-me que o Assassino da Rosa Negra deve estar desesperado por não matar há tanto tempo. Não era hábito dele ligar às vítimas antes de as matar. Sento-me ao volante, pensativa.
- Queres que eu conduza? - Oferece-se Marshall.
- Não... Obrigado. - Recuso. - Estava só a pensar... Há algo que não bate certo aqui...
Ligo o motor, ainda a matutar no caso. De algo eu tenha a certeza: o Assassino da Rosa Negra voltou a atacar.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

A Rosa Negra - Capítulo 1

Um Dia Como Todos os Outros
Uma. Duas. Quatro. Nove. Milhares. Finalmente. As nuvens ameaçam já há algum tempo despejar a sua carga líquida nas ruas Londrinas escuras. Mas aquele beco, outrora enegrecido pelas trevas, é agora iluminado pelas berrantes luzes vermelhas e azuis dos carros da Polícia. A fita amarela com letras pretas dava a mensagem de passagem proibida. Um detetive, meu parceiro, aproxima-se, vindo de um dos carros que acabara de chegar.
- Bom dia, Karen. - Cumprimenta, amigavelmente.
- Olá, Marshall. - Respondo, aceitado o copo de café que me oferecia.
Quando era nova, sempre preferira o chá. Muito britânico. Mas desde que Ryan Marshall, americano de nascença, começou a trabalhar comigo, tenho bebido mais café. Ajuda-me a não adormecer quando tenho casos para tratar a altas horas da noite. Lanço um olhar ao médico legista, que me revela o que está escrito nos papeis que tem na mão.
- Vítima do sexo feminino, entre os vinte e cinco e os trinta anos, morreu estrangulada, com ferimentos que indicam uma luta contra o atacante... Ah, e tem um traumatismo post mortem, o que, juntamente com o facto de não haver aqui sangue nenhum, indica que o corpo foi removido do local original do crime.
- Temos de nos apressar, antes que a chuva apague as provas. - Comenta Marshall, com o seu sotaque americano, dando-me passagem por entre dois veículos.
A mulher é loira, e está deitada de cabeça para baixo. Um dos seus braços repousa de uma forma retorcida em cima das suas costas, mostrando alguns cortes profundos, mas limpos. Agacho-me, colocando a luva fina de borracha.
- Tudo de acordo com o relatório... - Informo, virando a cara da vítima.
Os seus olhos verdes vidrados são perturbadores. Nunca me habituei aos olhos dos mortos.
- Provavelmente foi violada durante a noite. - Diz Marshall, olhando para o céu e estremecendo. - Odeio o vosso tempo.
- Eu também. - Retorquo, analisando a garganta da vítima. - Parece que tem a garganta inchada... Pode ser a causa da asfixia...
- Talvez seja melhor esperarmos pela análise do médico Legista, não?
- Espera, acho que consigo puxar... - Afirmo, pondo os dedos dentro da boca do cadáver.
Sinto algo fino tocar-me os dedos. Agarro-o e puxo. Parece um fio grosso, verde. O caule de uma planta? Espinhos cobertos de sangue coagulado surgem. O meu coração bate acelerado. Não pode ser. Não. Depois de tanto tempo. Não pode. Finalmente, o caule revela-se ser de uma rosa. Mas não uma rosa qualquer. Uma rosa negra, de pétalas cuidadas. Se não é ele, é um copiador, mas dos bons.
- Marshall...
- Isso é o que estoua  pensar Karen...? - Interroga.
- Sim... Liga para a sede. - Ordeno. - Diz-lhes que o Assassino da Rosa Negra está de volta.

O caos instala-se no edifício da New Scotland Yard. O departamento onde trabalho está agitado, como há muito já não o vira. O vil Assassino da Rosa Negra está de novo ao activo. Seis anos antes, durante cinco anos, duas vezes por mês, aparecia o corpo de uma jovem vítima, morta por estrangulamento, com uma Rosa Negra entalada na garganta. Nunca houve vestígios, e muito poucas pistas foram encontradas que apontassem para o Assassino. Tornou-se um dos mais temidos Serial-Killers, não só pela população, como também pela Scotland Yard. Marshall está neste momento a ligar à mulher dele. Ela encaixa no padrão do assassino. é loira de olhos verdes. Só uma das vítimas escapou ao normal. Encontrámos uma mulher de cabelos negros, morta nas mesmas condições, com a Rosa Negra na garganta. Mas ela fora uma lutadora. Era uma ex-marine, que lutou bastante contra o assassino. A única coisa que conseguimos foi um pedaço de papel com um número incompleto. Então, deu-se o intervalo de um ano. Pensámos que talvez ele fora ferido em combate e tivesse morrido, na melhor das hipóteses. Ou ficado inválido. Mas pelos vistos, tal não tinha acontecido. Ele voltara. Cinco longos anos procurei por ele, sem nenhuma pista. Mas desta vez, eu estava com o pressentimento que conseguiríamos descobrir algo.
- Já avisei a Tara. - Informa Marshall, guardando o telemóvel. - Ela vai levar o Cory para casa da mãe dela.
- Sim, o melhor é deixarem o vosso filho num local onde não corra risco... - Concordo. - Espero que voltem depressa os testes ao corpo... Acho que vou passar lá por baixo para dar uma olhada aos pertences da vítima, vens comigo?
- A caminho, vou só fazer mais um telefonema. - Avisa, agarrando no telefone fio da sua secretária.
- Vais ligar à amante? - Gracejo.
- Com um serial-killer à solta mas mantens o sentido de humor, hun? - Ri-se, revirando os olhos.

O Rapaz da Casa Amarela - Epílogo

A folha cai-lhe no cabeça, fazendo-o coçar os cabelos castanhos. Jaime olha para o homem que o acompanha.
- Então, que vamos fazer par a festa? - Pergunta Jaime, ansioso.
- Não faço a mínima ideia! - Responde Quim. - Acho que devíamos deixar o aniversariante escolher como quer passar o seu décimo aniversário, a passagem para a idade dos dois dígitos! Que te parece, Quico?
Olho para ele, pensativo. Dez anos. Parece-me realmente muito. Imenso, na verdade.
- Não sei! - Exclamo, esticando os braços. - Mas quero algo graaande. Enorme aliás!
Eles riem-se, olhando para mim com ternura. Dez anos. É muito tempo. Mas não tanto como doze. Quando eles casaram. E mais seis, quando eles começaram a namorar. O Pai Jaime e o Pai Quim já estão juntos à doze anos mais seis. E tal como o Avô Fred e o Avô Carlos, amam-se muito. Eu não entendo como um homem pode amar outro. Eu Só gosto de raparigas, aliás, até tenho uma namorada...
- Oh sim, temos de convidar a Belinha! - Informo, mencionando a minha namorada.
- Claro! - Replicam em uníssono.
Não. Não compreendo o amor. Mas nem mesmo o amor que um rapaz sente por uma rapariga. É apenas isso. Amor. Os meus dois pais amam-me. E amam-se. Não há problema nenhum nisso. Algumas pessoas da aldeia não gostam disso. Mas quem são elas? Velhas mexeriqueiras. Nada mais. Chapinho com o pé numa poça de água.
- Podíamos ir ao circo, não? Ouvi dizer que vai estar lá na cidade... - Comenta o Pai Quim.
- Sim, mas temos de convidar a Belinha. - Repito.
- Ela não pode faltar, não. - Confirma o Pai Jaime.
E assim caminhamos pela aldeia, sob o sol alaranjado de Outono, pensando como vai ser o dia de amanhã. O dia em que eu faço dez anos. Tanto tempo... Dez anos... Mas não tanto como doze mais seis. Como o tempo que o Pai Jaime e o Pai Quim estão juntos. E muito menos do que doze, mais seis, mais dezassete, mais três. O Avô Fred e o Avô Carlos já estão juntos há tanto tempo... Esse tempo todo, a amarem-se como se fosse o primeiro dia... Mas já lá vão doze, mais seis, mais dezassete, mais três anos, desde que se conheceram.

O Rapaz da Casa Amarela - Livro IV - Capítulo 2

Herói Escondido
Quim engole sofregamente o bocado de pão que acabara de mastigar. ele fita-me, com os seus olhos castanhos ainda húmidos.
- Então, vais-me contar porque é que te foste embora...? - Pergunta.
- Tu ias-te matando por minha causa. Se eu não tivesse aparecido, a tua avó ainda estaria viva e tu não te terias atirado daquela torre. - Afirmo, sentando-me na cadeira em frente a ele.
Ele olha para mim. Os meus olhos estão pregados no chão.
- Desculpa teres assistido à minha queda... Eu lembro-me de te ouvir chamar... - Comenta.
- Oh ele fez mais do que assistir... - Começa o meu pai.
- Pai! - Corto. - Agora não, por favor.
Frederico deteta o olhar confuso de Joaquim.
- Não lhe contaste? - Pergunta, escandalizado.
- Não me contou o quê? - Interroga Quim.
Araújo contorce-se, desconfortável. O sobrinho dele percebe que estamos a esconder-lhe algo. Quim ergue-se.
- O que é que me estão a esconder.
- Quem te salvou a vida. - Revela Araújo. - Mas é melhor explicares-lhe tu, Jaime.
Eu olho furioso para o velho. Eu não quero recordar aquilo que se passara um ano antes, no campanário da Igreja. Não quero relembrar a dor... A dor psicológica e física.
- Conta-me, por favor. - Suplica Quim.
Eu suspiro, preparando para lhe contar o que se passara naquela noite.
- Eu fui ter contigo à Igreja, e vi-te lá em cima. Corri que nem um desalmado para lá chegar antes de te atirares. Quando finalmente alcancei o topo, já te estavas a soltar. Eu chamei por ti, e segurei-te o braço. Bateste com o peito na parede da torre, e perdeste os sentidos... A tua mão começou a escorregar, e eu não estava a aguentar contigo, por isso... Atirei-me, envolvi-te com os meus braços, e quando atingimos o chão, rebolei, para dissipar alguma energia... Ainda assim tu partiste uma perna e eu parti uma perna e desloquei um ombro...
Sinto uma lágrima escorrer pela minha face, ao relembrar-me do que sentira, do ar a passar pelo meu corpo, do meu estômago parecer subir-me à garganta.
- Porque é que... Porque é que o fizeste? - Sussurra Quim, pegando-me na mão.
- Porque não suportava a ideia de te ver ali, caído, morto no chão, sabendo que pelo menos poderia tentar alguma coisa para te ajudar...
- E porque te foste embora quando eu mais precisava de ti?
- Tu... Eu... Não sei... Não te queria fazer sofrer mais do que fiz... - Digo, olhando para o tecto.
- Tu não me fizeste sofrer... Nem tu nem ninguém. Foi apenas obra do destino. Mas eu preciso de ti. Preciso do teu apoio, do teu abraço... Eu amo-te, Jaime...
Araújo endireita as costas com aquela revelação. É-lhe ainda difícil de enfrentar o facto de que o seu sobrinho nutre aquele sentimento por outro rapaz. 
Eu envolve-lhe o pescoço com os braços, puxando-o para mim, beijando-o carinhosamente. Quim corresponde, acariciando-me a cara e os cabelos. O beijo é interrompido por alguém a entrar de rompante na pequena cozinha.
- Cristo! Frederico! Eu estava preocupado! Disseram-me que tinhas vindo para aqui! O que é que se passou, querido?! - Exclama o Pai Carlos.
A sua voz morre num beijo caloroso dado por Frederico, que o faz corar. Carlos olha em volta e apercebe-se do que se passara.
- Como estás, Quim? - Pergunta, amigavelmente.
- Muito bem. Melhor do que nunca. - Afirma, olhando para mim com um sorriso rasgado.
- Vocês deviam ter dito o que se passou. - Comenta o Pai Carlos. - Têm noção e que deixaram a Laika sozinha em casa?
- Oh, onde é que ela está? - Interrogo, preocupado.
- Trouxe-a comigo. Está no quintal a brincar com o Pluto... Acho que aqueles dois estão a seguir o exemplo dos donos... - Responde, rindo-se. - Mas fico feliz por vocês.
Araújo ausenta-se, dizendo que se vai deitar. Os meus pais avisam que vão dar um passeio pela aldeia, antes de voltarem à Casa Amarela. Eu fico ali, sentado, olhando para Quim. Ele volta a beijar-me, desta vez mais calorosamente. Sinto a saudade nos seus lábios que se movem em uníssono com os meus, transparece o desejo na sua língua que toca a minha timidamente, demonstra carinho nas suas mãos que percorrem lentamente o meu corpo. Ele quebra o beijo, encostando a sua testa à minha.
- Quero que isto nunca mais acabe. - Diz, mantendo os olhos fechados, como que fazendo um desejo. Quando os abre, fixa-os nos meus. - Promete-me que não te voltas a ir embora... Por favor, promete.
- Eu prometo. Nunca mais vou ficar longe de ti. - Afirmo, beijando-o novamente.

terça-feira, 26 de abril de 2011

O Rapaz da Casa Amarela - Livro III - Capítulo 3

A Casa Amarela
Observo o pequeno cordeiro que adormecera no meu colo. O Ti Araújo observa o céu. Ele, tão bem como eu, sabe que dia é hoje. Um ano. Faz hoje exactamente um ano que a Avó faleceu. Faz hoje um ano que eu me tentei atirar do campanário da Igreja. E há um ano que não os vejo. Nem o Frederico, nem o Carlos, nem o... Jaime. Pura e simplesmente desvaneceram-se da aldeia. E sempre que tento trazer o assunto ao de cima, ninguém me diz nada. Ou ficam calados, ou desviam a conversa, fingindo que não sabem de quem estou a falar. Acaricio a lã macia do animal, encostando a cabeça ao tronco.
- Quim. Anda lá, a missa em honra da alma da Alzira deve estar quase a começar...
- Sim, Tio... Eu vou já, podes ir andando.
Ele arrasta-se, cansado e velho, pelo campo, seguido de perto por Pluto. Observo a Lua, fraca, apagada pelo Sol que se ergue alto naquela tarde de Segunda-Feira. Arregaço uma das mangas da camisa negra, que deslizara até ao meu pulso. O antigo caminho de terra batida que leva à Igreja serpenteia à minha frente, e percorro-o, vagarosamente.
A cerimónia havia começado minutos antes. Passou, lentamente, tal como o meu estado de espírito. Finalmente, o Padre Joaquim começou a citar a sua homilia.
- Hoje estamos aqui reunidos para recordar alguém. Alguém cujo nome era conhecido por muitos, amado por todos. Alzira, carinhosamente tratada entre a sua família - ouve-se um burburinho e oiço alguém comentar que tinha sido a família que a matara. - sempre foi uma mulher de carácter forte, justo e honesto.
Justo. Justo? É justo o que ela me está a fazer passar? Não, Quim, não a culpes... Ela morreu por tua culpa.
- Caminhei muitas vezes lado a lado com ela, discutindo sobre como decorar a igreja para as festas, como melhorar a vida aqui na aldeia. Ela sempre se mostrou disponível para tudo isso. Mas há um ano atrás, mesmo em frente a esta mesma Igreja, o seu coração frágil de anciã bateu pela última vez. Ela era uma amiga, um irmã, uma... - O Padre hesita, olhando para mim, fitando-me com os seus olhos expressivos e húmidos. - uma avó. Palavras duras saíram da sua boca. Palavras que ela certamente se arrepende de ter dito, palavras que poderiam ter destruído mais uma vida, para além da dela...
O meu coração contorce-se, o meu estômago dá um nó. Não aguento e sinto a água escorrer-me pelos olhos. Giro sobre os meus calcanhares, saí a correr da Igreja, chorando. Corro, sem destino. Corro para me escapar. Salto o muro. A porta emoldurada pela parede amarela barra-me o caminho, mas pontapeio-a com todas as minhas forças, que já são poucas. Ela cede, dando-me passagem. Atravesso a cozinha, subo as escadas e entro de rompante no quarto dele. No quarto agora vazio de Jaime. É a primeira vez em doze meses que volto a entrar naquela casa assombrada pela alegria outrora ali vivida. Ajoelho-me no chão, soluçando, gemendo.
- Porque te foste embora?! Porque me abandonaste quando precisava de ti! Todos me abandonaram! Deus, a minha Avó, Jaime! Que mal fiz eu! - Berro. - Que mal fiz eu...?
A minha voz morre-me na garganta e encolho-me, chorando. Nunca me disseram como sobrevivi à queda. Apenas me disseram que foi a sorte. Mas eu lembro-me da voz. A voz dele chamar pelo meu nome. É  única coisa de que me lembro. Jaime a chamar por mim. Fecho os olhos. Tudo o que posso ver são so seus olhos verdes, alegres. Jaime a correr em frente a Laika, a sua cadela Serra-da-Estrela. Vejo-o sentado na cama, à minha frente, contando-me como eram as coisas em Lisboa. Recordo-me de lhe ensinar onde estavam as constelações, nas noites quentes do Verão que ele cá passara. Sinto de novo o seu corpo quente sob o meu, naquela noite em que entrei pela sua janela, trepando pela árvore perto da Casa Amarela. A voz dele, grave, sábia, alegre, enche-me os ouvidos. Mas é abafada pelos gritos da minha avó.
Larga-me, Larga-me! Ai, que me morro aqui!
O seu corpo inerte, caído na poeira em frente à igreja. Encolho-me ainda mais, deixando-me cair no chão, em posição fetal. A minha testa toca os meus joelhos que tremem. Estou sem apoio, sem ninguém. A solidão avassaladora invade-me o corpo, toma-me a alma, corrói-me o ser.
Sinto um patinhar tímido perto de mim. A língua húmida de Pluto lambe-me a orelha, fazendo-me cócegas. Soluço, abraçando-me ao seu pescoço enquanto ele gane. Os seus olhos tristes e castanhos observam-me, desesperados por me ajudar.
- Está tudo bem, rapaz, eu estou bem. Não há problema. Vai ter com o Tio. Ele precisa de ajuda com as ovelhas. Eu fico bem. Vai.
Ele caminha para a porta do quarto, hesitando. Vira-se para trás, ladrando-me gentilmente. Aceno-lhe com a cabeça e ele saí, de orelhas em baixo, cabeça caída e cauda entre as pernas. Espero até ter a certeza que ele se foi embora. Não quero que o único amigo que me resta me veja assim vulnerável. Uma lágrima escorre-me pela face. Volto a deitar-me, enroscado em mim mesmo. Nem mesmo a dor da foice a dilacerar a minha pele quando ainda era novo é mais forte que esta dor no meu peito. Já não tenho forças para chorar. As minhas pálpebras pesam-me. Adormeço. Os sonhos depressa me atormentam.
Corro. Estou quase a chegar à Igreja. Mas a avó já está caída no chão. Os seus olhos abrem-se, a sua boca abre e fecha, como um peixe fora de água. A sua voz ecoa, gritando-me para eu a soltar, insultando-me, por a ter morto. "Acabaste com a minha vida, seu bastardo, és uma maldição. És o Demónio, estás possuído. Naquela casa caminha a Besta como caminha Deus no céu!", berra, enchendo a minha cabeça que parece querer explodir. Choro. Grito pelo primeiro nome que me ocorre. "Jaime! Jaaaaaaaime! Voltaaaa!!" mas ele afasta-se cada vez mais sem olhar para trás. Laika caminha ao seu lado, puxando Pluto consigo. O Tio afasta-se também, levando consigo o meu cordeiro. Carrega-o às costas como uma mercadoria. Olha para mim, sorrindo sadicamente. "Matas-te a minha irmã, agora sofre as consequências!". Volto a gritar pelo seu nome, chorando. "Jaime! Jaime! Por favor! Jaime!". Ele surge ao meu lado, tocando-me no ombro. Chama pelo meu nome. "Meu Deus, Quim! Joaquim!"
- Amor, acorda!

O Rapaz da Casa Amarela - Livro IV - Capítulo 1

Desaparecido
Tic. Tac. Tic. Tac. Tic. Ta...
- Filho, anda almoçar. - Chama o Pai Fred, interrompendo o relógio.
- Argh, que tédio! - Exclamo, sentando-me à mesa. - O pai Carlos, ficou de novo a trabalhar até tarde?
- Sim... Teve de ser... Mas deve estar mesmo aí a chegar. - Diz, tentando convencer-se a si próprio.
- Sim... Deve estar.
Comemos em silêncio, apenas olhando de vez em quando um para o outro. Laika também está a comer a sua refeição, na cozinha, junto aos meus pés. Olho para o calendário. Um ano. O meu pai apercebe-se onde está pousado o meu olhar.
- Filho...
- Tenho tido um mau pressentimento... Pai... Sonhei que ele... Sonhei que o Quim tinha mesmo... - Um soluço interrompe-me, e as lágrimas correm-me pelos olhos.
O Pai Frederico salta da cadeira, contornando a mesa e abraçando-me ternamente.
- Pronto, está tudo bem, ele está bem, filho.
- Como podes ter a certeza?! Há um ano que não temos notícias. Um ano de incertezas e de dor!
O telefone toca. O meu pai ergue-se, certificando-se de que estou bem. Ele pega no aparelho e atende.
- Estou, sim, quem fala?
Oiço um sussurro vindo do auscultador, mas não percebo nada. No entanto, o meu pai começa a demonstrar sinais de surpresa e de pânico.
- Meu Deus... E encontraram-no...? Não?
Comecei a temer pelo pai Carlos.
- Ok, Araújo, tenha calma, sim, eu vou para aí. Sim, já.
Um ano tinha passado antes de ouvir aquele nome. É o tio de Quim. O meu peito aperta-se. Algo estava errado. Algo estava muito errado.
- Filho, mantem a calma... - Pede o meu pai, com voz trémula. - Mas esta manhã, deram uma missa em honra da Dona Alzira. O Quim estava lá, mas saiu a meio a chorar e a correr. Ainda não o encontraram e ninguém sabe onde está...
Levanto-me de um salto, agarro no meu casaco e no meu telemóvel.
- Então de que estás à espera! Vamos!
A viagem de carro dá cabo dos nervos aos dois. Primeiro porque temos medo de chegar tarde demais, depois porque não queremos abusar da velocidade na estrada. Três horas depois, começo a ver a entrada da Vila. Não se vê ninguém nas ruas. O meu pai para o carro em frente à casa. A casa de Alzira. Entro, sentindo o cheiro a velas e incenso.
- Frederico, ainda bem que pôde vir. Estamos desesperado. A vila anda toda à procura dele, mas ninguém o descobre. - Diz Araújo, saindo da cozinha.
Discutimos um pouco onde ele poderá estar, e procuramos em seguida. Percorremos a vila de uma ponta a outra, mas nada nos dá pistas onde ele possa estar. O meu medo de que ele se queira matar de novo enche-me a alma. Não o quero perder. Prometo a mim mesmo que depois disto moverei montanhas para estar com ele. A noite começa a cair e voltamos a casa de Araújo. O homem idoso está sentado numa poltrona, respirando com dificuldade. O meu pai tenta acalmá-lo. Sento-me no chão, meditando. Sinto um corpo quente atrás de mim. Viro-me, olhando para o enorme Pastor alemão castanho que me olha, suplicante.
- Pluto... Anda cá, rapaz. - Chamo carinhosamente.
Ele aproxima-se, deixando cair algo no chão, que trazia na boca. Olho para o que ele deixara no soalho.
- Oh, meu porco agora andas a arrancar bocados de azulei...
Reconheço o padrão. Reconheço a forma. Não era um azulejo, mas sim um fragmento de porcelana. Uma porcelana branca pintada de azul. Numa das brincadeiras com Pluto e Laika, dento de casa, eu tinha dado um encontrão àquela jarra. Para esconder as provas, enterrara-a no jardim das traseiras.
- Cristo, já sei onde ele está! - Grito, levantando-me após se ter feito luz na minha cabeça.
Corro como um doido colina acima, na direção da Casa Amarela, que outrora me pertencera. Trepo pelo portão, e passo pela porta arrombada. Oiço alguém lá em cima. Aquela voz, que tão bem conheço, a gritar pelo meu nome.
- Jaime! Jaime! Por Favor! Jaime!
Entro no meu antigo quarto. Ele contorce-se num pesadelo.
- Meu Deus! Quim! Joaquim! Amor, acorda!
Ele abre os olhos, de repente. Olha em volta. Envolvo-o com os meus braços. ele descarrega mais lágrimas nos meus ombros, apertando-me contra o seu corpo quente. Pluto entra no quarto, seguido de Araújo e do Pai Fred. eles entreolham-se, aliviados.
- Deixaste-me tão preocupado... - Comento, dando-lhe um beijo leve na orelha.
- Jaime... - Chama, com voz rouca... - Porque te foste embora... Nunca mais me deixes... Preciso tanto de ti...
- Eu sei, eu sei... Perdoa-me... - Suplico. - Mas vens comigo primeiro, comer e beber qualquer coisa e depois respondo a todas as perguntas que tiveres... Não me vou embora, prometo.

domingo, 24 de abril de 2011

O Rapaz Da Casa Amarela - Livro III - Capítulo 2

Memórias de um Coração Choroso
Observo as estátuas da igreja. O meu tio saiu há pouco tempo. O meu coração bate vagarosamente. As memórias correm-me pela cabeça.

Choro desalmadamente, ao sentir a lâmina dilacerar-me as costas. O Ti Manel agarra-me, gritando desesperado pelo que acontecera. Primeiro levam-me para dentro da casa, tentando parar o sangue enquanto esperam pela ambulância. Ficam preocupados quando o meu choro começa a esmorecer. Já mal tenho forças para soluçar. O ardor percorre-me as costas inteiras. A minha avó entra pelo quarto adentro, berrando.
- Que fizeram ao meu menino?! Ao meu querido menino? Que lhe fizeram?!
Ela chora, e faz-me chorar. Finalmente o médico chega. A minha avó pede para ele me curar. Ele diz que tem de cozer a ferida, mas que não há tempo para esperar que a anestesia faça efeito. A minha avó grita-lhe para não me fazer sofrer mais. Arrastam-na para fora do quarto. Sinto cada picada da agulha do médico. Mas já não tenho forças para gritar.

Estou numa sala branca. É o hospital para onde me levaram depois de me terem cosido. Mas desta vez, estou mais crescido. Foi quando torci o calcanhar a saltar nas rochas do rio. Vejo a minha perna suspensa. O ti Araújo entra, seguido da minha avó, preocupada. Sorrio-lhe para a acalmar, enquanto ela enterra a sua cabeça no meu peito, chorando.

Vejo o Ti Araújo à minha frente. Estamos na casa da árvore acabada de construir. A minha avó chama-nos lá em baixo, para irmos lanchar. Mas nenhum de nós se mexe. Temos medo que alguma coisa caia. Sou o primeiro a erguer-me. A tábua cede e caio no chão, magoando um braço. Rebolo-me no chão queixando-me, com lágrimas nos olhos.
- É bem feito, que é para ver se aprender, palhaço! - Exclama a minha avó, rindo-se. - Agora vê lá se te recompões!
levanto-me e sigo-a. Ela dá-me uma fatia generosa de bolo com chocolate.

Caminho pela igreja vazia. Um soluço escapa-me. Vou para o meu local preferido. A torre do sino. Sento-me com as pernas penduradas lá para fora, encostado ao sino.

A Clarinha pede-me um beijo. Olho para ela, escandalizado.
- Aqui, na casa de Deus? - Pergunto, indignado.
- Sim... Ele não se importa! O meu pai e a minha mãe também o fazem.
- Está bem...
Os nossos lábios tocam-se timidamente. O sino toca, sobressaltando-nos. Ela grita de medo e começa a chorar. Eu seguro nela e levo-a lá para baixo. A minha avó já lá está à nossa espera, com cara de poucos amigos.

Lá em baixo, posso imaginá-la a ralhar-nos. Um pouco mais à frente é onde ela tombou esta manhã. Tombou para nunca mais se levantar. Deus, perdoa-me. Hoje uma alma foi ter contigo por minha causa. Não quero ir para o Inferno. Mas que mundo é este onde todos me olham como se eu não merecesse sequer falar contigo? Não quero ficar na terra. Não quero ficar neste Inferno. Ergo-me, segurando-me com uma mão ao pilar. Fecho os olhos. Oiço alguém correr. Oiço uma porta bater. Leva-me contigo. Preciso de falar com ela. Não quero viver sem ela. Preciso de fazer as pazes com ela. Preciso de lhe dizer que nunca mais vou pecar.
Os passos ficam mais perto. Gritam o meu nome. Deixo os meus pés escorregarem. mantenho os meus olhos fechados. Sinto o vento nos meus cabelos. Sinto a gravidade deixar de fazer efeito. O chão aproxima-se, consigo senti-lo. E o meu peito atinge-o. Tudo fica negro.

sábado, 23 de abril de 2011

O Rapaz da Casa Amarela - Livro III - Capítulo 1

Salvai-me do Pecado
O burburinho da igreja é me tão familiar... Todos os domingos, toda a aldeia lá vai. Conheço todos. Todos me conhecem. Mas há algo de diferente em mim. A Avó ontem esteve a falar... Não, a discutir comigo, sobre o Jaime. Ela não quer que eu o veja. Ela repugna aquilo que os pais dele são, aquilo que ele é... Aquilo que eu sou. Não. Não posso ser. Estou confuso, assustado. Mas Deus é claro como água. Aquilo que eu fiz... Os desejos que tenho...
Senhor, tende piedade mim... Senhor, tende piedade porque pequei contra Ti, salvai-me do pecado, salvei-me do fogo do inferno, limpai a minha alma destas profanidades. Ajudarei todos. Sempre o fiz, e continuarei a fazê-lo. Por favor, ajudai-me a ser mais forte que o meu corpo, tornai o meu espírito apto a resistir aos desejos da carne. Sou um mero humano, mas dai-me forças.
Lá está ele. Arranjado para a missa. Camisa azul clara, com as mangas dobradas, calções brancos, ténis azuis. Os seus cabelos castanhos, como sempre, estão cuidados. Rezo uma vez mais para que Deus me dê força.

Depois da missa, as pessoas cumprimentam-se, falando sobre os acontecimentos banais da vida quotidiana. Apresso-me a sair dali, de mãos nos bolsos. Sinto alguém puxar-me o braço. A sua mão suave é-me familiar.
- Quim! - Exclama. - O que se passa?
- Olá Jaime. Não se passa nada. Não se devia ter passado nada. - Suspiro, libertando-me.
- Que queres dizer? - Pergunta, irrequieto.
- Isso mesmo que ouviste. Foi um erro. - Digo por entre dentes, olhando para o chão.
- Afasta-te do meu neto. - Rosna a minha avó, puxando-me pelo braço.
Eu segui-a, caminhando ao lado dela.
- Que é que o filho dos Infernos te queria? - Pergunta, indignada. - Não me digas que se estava a fazer a ti! É já uma lambada da esquerda que nem sabe donde veio a direita!
- Avó! Pára! - Exclamo. - Que mal te fez ele?!
Ela fica a olhar para mim, com os seus olhos pequeninos e a sua boca desenhando um "o".
- Agora és insolente comigo? - Interroga, chamando a atenção de alguns olhares.
- Não é nada disso! Mas o Jaime, o Frederico e o Carlos não te fizeram mal, porque os tratas assim?! - Exclamo.
Ela olha-me surpreendida. Oh não... Acabei de lhe contar que tinha estado naquela casa. Acabei de admitir o que fiz.
- É esse o nome daqueles demónios?! - Exclama, cuspindo no chão. - Fica sabendo que quem pôs pé naquela casa, não é digno de entrar nos meus terrenos!
O meu peito parece comprimir-se num único ponto, e explodir de uma vez. Dou um passo atrás, pois as suas palavras atingem-me como uma chapada.
- Estás a dizer que...
- Sim, estou a dizer que em minha casa não entras! Não enquanto não me saíres daquela igreja sem pecado no corpo!
- Dona Alzira, Dona Alzira, tenha calma! - Socorre o Padre Joaquim, que fora chamado à atenção pelos gritos da minha avó.
- Não tenho calma não! A Besta está a levar o meu neto! - Diz, com lágrimas nos olhos.
- Avó, tenha calma, olha o seu coração! - Aviso, preocupado, segurando-a nos ombros.
- Não me toques! - Grita, sacudindo-me. - Não me toques! Não me toques! Ai que me morro aqui!
A sua mão aperta-se contra o peito e caiu de joelhos, amparada pelos braços do Padre. Ouço a voz de Jaime gritar para chamarem uma ambulância. Uma voz feminina com sotaque britânico que eu nunca ouvira pede às pessoas para se afastarem e lhe darem espaço para respirar. Ela ajuda o Padre a segurar a minha avó. O meu corpo tenta mexer-se para a amparar, mas na minha cabeça a sua ordem impede-me de o fazer. Não me toques, não me toques, não me toques! A rejeição entranha-se-me no peito. As sirenes ouvem-se momentos depois. A multidão começa a dispersar e eu caminho para a igreja, sem saber o que fazer. Ajoelho-me, apoiando as mãos no altar.
Cordeiro de Deus que tiras o pecado do mundo tem piedade de mim.
Confesso a Deus, todo poderoso, que eu pequei, muitas vezes, por palavras... actos... omissões... Por minha culpa... - as lágrimas escorrem-me pelos olhos que retêm a imagem da minha avó caída. - minha tão grande culpa, peço aos anjos e santos e a vós irmãos... - na minha mente vejo a cara sorridente de Jaime. - Que rogueis por mim a Deus, nosso senhor.
Em nome do pai, do filho e do Espírito Santo, como era no princípio... - Vejo-me a brincar inocentemente com Pluto, a aprender coisas com o ti Araújo. - agora e sempre, amén.
Durante o resto dessa tarde, rezo mais. Não se ouve ninguém entrar na igreja, nem mesmo o Padre voltou para fechar os portões. Quando finalmente oiço passos é o Ti Araújo.
- Que Deus... - Diz, entre soluços - Que Ele... Tenha a... sua alma em paz...
Irrompo em lágrimas e soluços, agarrando-me ao meu tio.
- Não! Não! Não! Não! Que fiz eu! Que fiz eu! - Grito, ouvindo o eco da minha voz distorcida. - Que fiz eu!?
- Não, Quim, não foste tu. Tu não tiveste culpa... - Acalma-me, aconchegando-me.
Já não consigo articular palavras. Agora só consigo libertar gritos de dor, uma dor que me dilacera o Espírito, uma dor que me destrói o coração. Aperto mais o corpo do meu tio contra mim. Por momentos desejo que aquele fosse o corpo de Jaime. Grito de novo, frustrado comigo mesmo. As últimas palavras esfaqueiam a minha mente, espezinham-na. Só consigo ouvir a sua voz gritar para não lhe tocar, enquanto cai inanimada no chão, nos braços do Padre. 

sexta-feira, 22 de abril de 2011

O Rapaz da Casa Amarela - Livro II - Capítulo 4

Amar, Respeitar, Orar
Era já o final da tarde quando me decidi a entrar. A pequena igreja estava vazia. Ajoelho-me e faço o sinal da cruz. Sento-me num banco, olhando em volta e ajoelho-me na tábua à minha frente. Enterro a cara nas mãos.
Porquê, meu Deus? Porque permites a estas pessoas que digam mal dos meus pais, que tanto bem me fizeram... Que mal tem o amor que eles sentem um pelo outro? Interrogo-me.
- Porquê...? - Murmuro, soluçando.
- Filho, Ele nem sempre responde, se precisares de falar com alguém que saiba o que te dizer, podes falar comigo... - Diz uma voz masculina familiar e amigável.
Ergo o olhar, limpando as lágrimas. É o padre da aldeia.
- Senhor Padre? - Interrogo incrédulo.
- Joaquim. - Corrige. - Podes tratar-me pelo nome... Tu deves ser o Jaime. O Carlos falou-me de ti.
O nome dele fez-me estremecer.
- Conhece o meu pai? - Pergunto.
- Sim. - Confirma, sentando-se ao meu lado e fazendo-me sinal para que o imitasse. - Ele veio ter comigo quando ouviu o que as pessoas diziam sobre ele.
- A sério?
- Sim. Queria apoio de Deus.
- E o senhor padr... Joaquim, o que acha deles? - Interrogo, referindo-me aos meus pais.
- Acho que os paroquianos deviam aprender a amar e a respeitar como eles. - Informa. - Já os vi juntos e sei que aquilo é o mesmo amor que uniria um homem e uma mulher. Deus ensina-nos a respeitar o próximo, coisa que as pessoas não fazem em relação aos teus pais. No entanto, quando o teu pai Carlos chegou perto de mim,a  única coisa que disse foi: "Senhor Padre, todos dizem que eu peco... Peco por amar alguém. não acredito nisso. Peço então a Deus que os perdoe, por falarem sem saber, por difamarem sem conhecer.". Eu respondi que ele não devia deixar-se levar pelas frases dos outros e que deveria continuar a amar e a respeitar o Frederico como sempre o fez.
- O senhor era a última pessoa com quem eu esperava poder contar... - Digo, suspirando aliviado.
- Tenho de admitir que estranhei quando soube acerca dos teus pais. Mas como já disse, vi como eles estão juntos. Amam-se um ao outro mais do que muitos casais que eu já vi. E é um amor tão puro que não olha sequer ao género.
Sorrio.
- Gostava de pensar que também encontrei um amor assim... Mas a família dele não é muito fã disso...
- Mm... Não que eu oiça os mexericos, mas não pude deixar de saber que se fala por aí que tu e o Quim são muito próximos.
- Sim...
- A Dona Alzira vem cá todos os dias de manhã, rezar pelo filho. São muito conservadores. - Comenta o Padre. - Não te deixes abater pelo que aquela senhor diz... e não penses mal dela. Ela é uma mulher muito bondosa, de carácter forte. O seu único defeito é, Deus me perdoe por dizer isto, mas ela é casmurra que nem uma mula, nem com a cenoura lá vai!
Solto uma gargalhada com as palavras do Padre.
- Jaime, ouve. Eu percebo a tua dor e a tua revolta. E é bom que te vires para Deus nestas alturas.
- É... O meu pai Frederico não acredita em Deus, mas diz-me que ter esse tipo de apoio de uma entidade divina nos torna mais fortes.
- É isso que surpreende! - Exclama o Padre. - Como os teus pais são sensatos! Como eles são capazes de respeitar e tentar compreender pontos de vista que nem sequer apoiam. É como digo, as pessoas bem que podiam aprender umas quantas coisas com eles.
Eu sorrio em resposta, admirando os elogios daquele homem de cabelos castanhos e olhos negros.
- Bom, agora vou deixar-te à vontade com Ele, - diz, apontando para o crucifixo. - e aproveito para preparar o sermão para a missa de Domingo... Conto ver-te por cá amanhã, hun?
- Cá estarei, senhor padre. - Respondo, acenando-lhe.
Ainda fico mais algum tempo na igreja. Rezo. Rezo para que as pessoas pensem como o Padre, rezo para que as pessoas não me roubem Joaquim, rezo para que Deus me dê forças para aguentar firme as más-línguas do povo.

Quando passo pelo largo em frente à igreja, apercebo-me de cinco pessoas em frente ao carro. São dois idosos e três mulheres de idade avançada, entre elas, Dona Alzira e Dona Armanda. é um carro de marca, negro. Observo os aldeões gesticular.
- Ai, alguém que vá chamar o Araújo ou o Quim, que não percebemos nada do que estes ingleses dizem!
Aproximei-me calmo.
- Need any help? - Pergunto, dirigindo-me à condutora loira.
- Oh, gosh! Yes, please! - Supolica. - Finally, someone that's able to speak to us!
- Don't mind them... Not every Portuguese learned English at school... - digo, gracejando.
- Ok, look, honey, I'm trying to find Frederico, an architect I met in London... He said he was living here, but I don't find his address.
- Oh, he's actually my father! - Exclamo. - If you give me a ride I can point you the way.
- Hop in, honey! - Convida, sorrindo-me e tirando os óculos de sol, mostrando os seus olhos verdes.
Antes de entrar, olho para o grupo de anciãos.
- Podiam pedir-me ajuda a mim, não há problema. - Digo, sorrindo triunfante.
- Adorei as caras deles... - Comenta ela, num português com sotaque forte.
- Oh, a senhora sabe falar português?! - Interrogo, rindo-me.
- Sim. Eu tinha-te visto e reconheci-te... queria que brilhasses.
- Mas como? - Pergunto.
- Quando disse que tinha conhecido o teu pai, era verdade. Sabes que ele morou em Londres até aos dezassete. Os teus avós eram portugueses e ensinaram-no a falar as duas línguas, e ele ensinou-me a mim. Mas já está enferrujado. - Comenta. - Tu e eu conhecemo-nos quando tinhas seis anos, já não te lembras de mim Jimmy...?
- Oh! Anne! - Exclamo, lembrando-me dela. - Meu Deus! nem pensei que poderias ser tu...! Mas não eras ruiva?
- Ah... sim... I was a Ginger*... Mas tive de pintar de loiro para o último filme que fiz.
- Então sempre conseguiste seguir a carreira de actriz?
- Claro!
Eu olho para a Casa Amarela. Laika já corre em volta do carro. Também reconhece aquela mulher que passou umas semanas em nossa casa, há uns anos atrás. Ela é a melhor amiga do pai Frederico.
- Vim cá passar umas semanas... Mas eles não sabem. - Informa, pisando-me o olho.
- Eu acho que vão adorar a surpresa.

*"I was a Ginger." - Eu era ruiva.

tradução da conversa entre Anne e Jaime
- Need any help? - Precisa de ajuda? 
- Oh, gosh! Yes, please! - Oh, deuses! Sim, por favor!
- Don't mind them... Not every Portuguese learned English at school... - Não lhes ligue... Nem todos os portugueses aprendem inglês na escola...
- Ok, look, honey, I'm trying to find Frederico, an architect I met in London... He said he was living here, but I don't find his address. - Ok, olha, querido, estou à procura do Frederico, um arquitecto que conheci em Londres... ele disse que morava aqui, mas não encontro a sua morada.
- Oh, he's actually my father! If you give me a ride I can point you the way. - Oh, ele é na verdade o meu pai! Se me der uma boleia, posso indicar o caminho.
- Hop in, honey! - Salta cá para dentro, querido!


quinta-feira, 21 de abril de 2011

O Rapaz da Casa Amarela - Livro II - Capítulo 3

Uma Questão de Perspectiva
Acordo com Laika a ladrar. Relembro a noite anterior e olho surpreendido para a cama vazia ao meu lado. Na almofada está um papel, escrito com uma caligrafia cuidada da primária.

É a primeira vez em muito tempo que tenho de escrever algo que não seja uma lista das compras... Mas tive de sair antes de acordares, porque a Avó precisa da minha ajuda pela manhã cedo para dar de comer aos animais.
P.S. És ainda mais belo quando dormes...

Um sorriso desenha-se na minha cara, olhando para o tecto. Apercebo-me que ainda estou nu e corro para a cómoda, escolhendo algumas roupas. Tomo um duche rápido, visto-me e disparo para a cozinha, tomando o pequeno-almoço rapidamente.
- Hei, hei, a que se deve tanta felicidade? - Pergunta o pai Fred, ainda sonolento.
- O Quim passou cá a noite. - Diz Carlos, entrando em casa com uma pasta de médico preta.
- Não, não passou! - Minto.
- Não era uma pergunta, filho. - Comenta ele, sorrindo. - Hoje de manhã ia sair mais cedo para ir tratar de uma égua que estava a ter um parto. Quando entrei na casa de banho, deparei-me com um pigmeu despido lá dentro...
- Oh, foi por isso que praguejas-te hoje de manhã? - Pergunta Fred incrédulo.
- Ele estava nu na casa de banho? - Interrogo, boquiaberto.
- Sim, ele estava a tentar tomar banho sem nos acordar... Contou-me o que se passou ontem à noite. - Informa, apoiando-se no balcão e aproximando a sua cara imenso da minha, quase tocando com o seu nariz no meu.
Ele faz sempre isso quando quer que eu não minta. Eu sempre tive dificuldades em mentir às pessoas cara a cara, e quanto mais próximas elas estão de mim, mais difícil me é ocultar a verdade.
- A sério... O que é que ele te disse...? - Inquiro.
- Não me disse nada. Eu vi tudo... - Afirma.
Por uma fracção de segundos, os seus olhos apontam para a minha cintura, e voltam a fitar os meus. A mensagem que ele queria dar-me atingiu-me como uma pancada.
- Oh, credo! Ele estava... tu viste... Urgh! Para onde estavas a olhar pai?!
- Sim...
- Calma lá, o que é que me está a escapar?! - Comenta o pai Fred, fingindo-se resignado. - Tu andas a ver meninos nus?
- Não pude evitar! Ele estava à minha frente! - Defende-se Carlos, revirando os olhos. - Enfim... Ele lá tomou o banho, vestiu-se e pediu-me papel e caneta.
Eu olho para a minha tigela com cereais e leite, corando.
- Não há problema, Jaime, nós só estamos feliz por teres encontrado alguém. - Afirma Fred.
Mas detecto reticências na sua voz. Por momentos, a possibilidade de eles me estarem a esconder algo cruzou-me a mente. Afastei esses pensamentos, comendo mais uma colher de cereais.
Termino o pequeno almoço e caminho para o jardim. Começo a brincar com Laika, pensando se deverei ou não falar com Quim. Decido que sim, que devo falar com ele e dirijo-me a casa da Dona Alzira.

A casa é pitoresca, feita de pedra. Umas escadas exteriores dão acesso à zona de habitação. Por baixo, está uma garagem, fechada. Olho em volta. Na casa vizinha um cão observa-me curioso. Oiço uma voz lá em cima.
- Sim, Armanda, mas já sabe como são os rapazes dos nossos tempos. Vão-se e nunca mais voltam. - Comentava uma voz viva, mas marcada pelo tempo.
- Tudo bem, Alzira, mas isso não significa que não me deixe o espírito agitado ao saber que o meu próprio filho me está a abandonar... Por falar nisso, onde anda o Quimzinho? - Respondeu uma outra voz, um pouco mais jovem.
- Foi com o Araújo... - Reponde Alzira, abrindo a porta, tornando a conversa mais audível. - Foram levar as ovelhas a pastar.
Encosto-me à parede da casa, ouvindo as senhoras descer as escadas.
- O seu irmão é que lhe ensina muita coisa... Tenho pena que a escola tenha fechado...
- Sim, mas o Araújo também já não teria saúde para estar a cuidar de rapazinhos. Aliás, nem de ovelhas, por isso é que o Quim o vai ajudar depois de me ajudar a orientar as coisas com animais aqui em casa.
- É um amor de pessoa, o seu neto. - Elogia D. Armanda. - Pena é que ande com más companhias...
- Más companhias? - Interroga Alzira. - Oh diácho, mas o que é que está para aí a dizer, mulher?
- Então não sabe? A Ti Carolina, a que mora lá para os lados da fonte, sabe? Ela diz que viu o seu menino, já várias vezes, a ir àquela casa.
- Impossível. - Afirma a avó de Quim. - Ele sempre foi brincar para os bosques quando tem tempo livre. Mas não vai à Casa Amarela que não deixo. Eu já lhe disse, e digo a todos: Naquela casa, caminha o demónio como caminha Deus no céu! Ouve o que te digo.
Sinto a raiva inundar-me o peito.
- Cristo! - Exclama Armanda, benzendo-se. - Mas lá nisso até tem...
Ela bloqueia as suas palavras quando me vê, já ao fundo das escadas. eu pusera-me em frente ao pequeno portão de metal antigo, olhando para as duas senhoras. Engulo as palavras ácidas que quero cuspir. Dizê-las só apoiaria as teorias das mexeriqueiras.
- Bons dias. - Cumprimento, fingindo não ter estado a ouvir a conversa. - O Joaquim está?
elas entre-olham-se. Um "eu bem disse" flutua no ar, sem que ninguém o pronuncie. Mas algo acontece que me surpreende. Alzira desce as escadas, caminhando na minha direcção. É uma mulher baixinha, magra e enrrugada. Mas as suas mãos têm um aperto forte. Ela puxa-me violentamente para longe da casa dela.
- Tu aqui não me pões os pés, coisa profana! - Exclama. - Podes ir à missa pelas aparências, mas sei bem que és filho do demónio.
- Com todo o respeito, Dona Alzira, mas o que a faz pensar isso? - Interrogo.
- Homens são feitos para ter mulheres! Não são feitos para andar a enrabarem-se uns aos outros!
Sinto o meu queixo cair, como se tivesse recebido uma chapada.
- Eu tenho muito respeito pela senhora, porque conheço o seu neto e foi a senhora que o educou, mas não admito que diga essas coisas dos meus pais! - Exclamo. - Fique sabendo que eles são pessoas muito melhores que você, porque não andam por aí a espalhar mexericos e insultos sobre pessoas que nem conhece! Tenha o resto de um bom dia!
Caminho com passo determinado, deixando para trás a aldeia, dirigindo-me de novo a casa. Na minha cabeça ecoavam as palavras daquela mulher que perder todo o respeito que tinha por ela. Gritei, berrei a plenos pulmões, frustrado com a malícia com que os homens eram capazes de se referir aos outros. em nome de Deus?! Mas que Deus apoiaria esses mal-dizeres? Não foi o próprio filho de Deus que disse que nos devemos amar uns aos outros como Ele nos amou? Onde está esse Deus presente nestas pessoas que caminham a terra?!

O Rapaz Da Casa Amarela - Livro II - Capítulo 2

Um Anjo no Meu Quarto
Não consigo dormir, apesar de a noite já ir alta. Os grilos cantam incessantemente. Ouço um mocho piar, e decido levantar-me. É uma típica noite quente de Verão. Ponho-me à janela a olhar para as estrelas. Aqui parecem tão brilhantes, nada como em Lisboa, onde o céu se põe negro assim que o Sol se aposenta para dar lugar à Lua que brilha tenuemente. Suspiro, pois é a única coisa que posso fazer por aquele rapaz que me tira o sono. Fecho os meus olhos. À minha volta, a casa transforma-se, relutantemente. Se não o posso ter na minha vida real, pelo menos no mundo de fantasia que ele me ajudou a criar, tê-lo-ei nos meus braços. Sento-me no parapeito da janela, que se torna um banco de jardim. Ao meu lado, imagino-o, com os seus braços musculados, os seus abdominais definidos, envolvendo-me em tronco nu num abraço caloroso. A sua voz chama por mim, primeiro baixo, depois num grito reprimido. Espera... É mesmo ele que me está a chamar.
- Quim, o que é que estás a fazer aqui? - Pergunto, num sussurro.
- Queria ver-te... - Informa. - Vou subir.
Observo-o a trepar pelo carvalho que se ergue perto do meu quarto. Ele tenta chegar perto da janela por um dos ramos, mas nenhum lhe dá um caminho, por isso salta, segurando-se ao parapeito, que protestou sob o seu peso. Ajudo-o a erguer-se para dentro do quarto. Ele olha para mim, de cima a baixo e começa a ficar vermelho, tentando balbuciar algo.
- Que se passa? - Interrogo.
Ele aponta para a minha cintura. É então que percebo. Estou em boxers por causa do calor que se faz sentir nesta altura do ano. Ponho as minhas mãos em frene ao meu corpo, tapando a roupa interior.
- Oh, desculpa, não me lembrei que estava nestes preparos... - Comento, caminhando em direção à cómoda.
Entre mim e a peça de mobília, está aquele corpo entroncado que me faz gravitar para si mesmo. Quim prende-me gentilmente o braço quando passo perto dele, puxando-me para mais perto de si. Ele beija-me calorosamente, passando a sua língua pelos meus lábios. Segura a minha cara com ambas as mãos, e murmura, com a respiração ofegante.
- Não conseguia estar mais longe de ti. Tive de vir.
Volta a beijar-me e eu deixo-me levar. As minhas mãos percorrem as suas costas, sentido as pequenas cavidades que se formavam junto aos ombros, sentido o relevo da sua cicatriz por baixo da camisola negra fina. Finalmente, as minhas mãos chegam à sua cintura, e puxam o tecido para cima, para o despir. Ele ergue os braços, ajudando-me, e envolve-me de seguida com eles. Batalho um pouco com o cinto dos seus calções, mas com a ajuda das suas mãos consigo também despir-lhos. Ele caminha para a cama, e faz-me deitar em cima dela, ficando por cima de mim. As minhas mãos acariciam cada músculo do seu corpo, sentindo cada centímetro de pele quente debaixo das pontas dos meus dedos. Ele encosta-se mais a mim, tornando a minha respiração ainda mais ofegante. Giramos sobre nós mesmos. Agora estou eu no topo. mordisco-lhe a base do pescoço, junto ao ombro, e desço com os lábios junto à sua pele morena ardente. Tiro-lhe os boxers e beijo-o nas pernas, voltando a subir, roçando o meu corpo no seu pénis erecto, provocando-lhe um estremecimento e um gemido de prazer. Ele volta a beijar-me, suspirando o meu nome, enquanto me tira a minha roupa interior. Os seus lábios procuram a minha boca incessantemente. Estico a mão, alcançando a gaveta da minha mesa de cabeceira e tiro de lá de dentro um preservativo, colocando-lho. Ele fita-me nos olhos. No escuro, ele parece ainda mais místico, mais misterioso. Beijo-o levemente, esperando senti-lo penetrar-me. Gemo quando isso acontece, envolvendo-o com os meus braços, puxando-o para mim, beijando-o calorosamente, saboreando os seus lábios com a ponta da língua. Lá está aquele aroma doce a morango de que eu tão bem me lembro, de novo, a invadir a minha boca, o meu corpo. A sua respiração começa a ficar mais alta e mais rápida, à medida que aumenta a velocidade dos movimentos de cintura. Também eu começo a ficar mais agitado, passando as mãos pelo seu corpo, pelos seus músculos, pela sua pele ardente. ele trinca-me o pescoço, e sussurra-me ao ouvido.
- Eu vou... Estou quase a...
- Continua... - Respondo. - Vai até ao fim...
Finalmente, ele liberta um longo gemido, esticando o corpo. Eu fecho os meus olhos, sentindo as mãos dele estimularem a minha glande, culminando num orgasmo que nunca mais esquecerei. Ele deixa-se cair ofegante ao meu lado, e eu aninho a minha cabeça no seu ombro, beijando-lhe o braço. Fico a observa-lo a olhar para o tecto. A sua cara séria transforma-se lentamente num sorriso, e olha para mim.
- Uau... - Murmura.
- Uau. - Concordo, rindo-me baixo e dando-lhe um beijo na base do maxilar.
- Achas que os teus pais ouviram...? - Pergunta, preocupado.
- Não faço a mínima ideia... O quarto deles fica ao fundo do corredor, não devem ter ouvido. - Digo.
- Nunca pensei que fosse tão bom estar assim com outro rapaz... - Comenta.
Desta vez o seu olhar está de novo fixo no tecto, a divagar.
- E eu nunca pensei que fosse assim tão bom estar contigo. - Acrescento, passando os meus lábios pelo seu peito.
Fecho os olhos, ouvindo o som ritmado do seu coração. Os grilos lá for ainda se ouvem. Mas para mim o mundo já não é mais o mesmo. Ele adormeceu. Respira profunda e lentamente, ressonando levemente. Faz lembrar o ronronar baixo de um gato. O seu peito eleva-se com cada inspiração, embalando-me. Observo uma vez mas o seu corpo. Parece vindo de outro mundo. Um Anjo na terra. Talvez afinal eu estivesse errado em achar que Deus me estava a abandonar. O pai Carlos é cristão e acredita que há um ser mais poderoso e sapiente que nós, a observar-nos do céu. Isso contrasta imenso com o facto de ele ser um profissional na área da ciência. Mas o pai Carlos diz sempre: "A igreja e a ciência podem apoiar-se mutuamente, pois não estão uma contra a outra. Quem está contra quem, são os cientistas contra os padres. Como em tudo neste mundo, são os humanos que estão em conflito entre si, não são a igreja e a ciência que se atacam mutuamente.". Por outro lado, o pai Fred é ateu. Não acredita na existência de Deus, mas respeita as crenças de Carlos, e nunca o impediu de me ensinar as doutrinas da igreja. Uma vez perguntei-lhe, sendo ele ateu, porque é que achava bem que o pai Carlos me ensinasse as coisas da Bíblia. A resposta dele deixou-me sem palavras: "Porque quero que tenhas algo em que te apoiar quando precisares. O teu pai Carlos é muito mais forte que eu. Eu viro-me para ele quando preciso de apoio, mas o homem não é para sempre. Carlos, por outro lado, vira-se para Deus quando precisa de apoio e esse, segundo o que ele acredita, é eterno. Se eu perder o teu pai, perco o meu apoio. Se Carlos me perder, continuará com algo onde se apoiar. Eu gostava de ter isso, mas não tenho. Tu no entanto, podes tê-lo.". Eu sempre andei dividido. Havia tantas provas da existência de Deus como da sua inexistência. Mas quando ouvia as pessoas insultarem-me a mim e aos meus pais, eu pensava que se existisse um Deus, que nos protegeria. o pai Carlos também tinha resposta para isso: "Há milhões de seres humanos para um Deus. Se ele só nos protegesse a nós, como poderia ser isso justo? Mas ele protege-nos com os nossos anjos da guarda. No entanto, temos de aprender a viver neste mundo cruel, e a melhor forma de o fazer é enfrentar os males que aqui existem. Nunca culpes Deus pelas acções do homem, pois apesar de tudo temos livre-arbítrio para decidirmos o que quisermos, não somos fantoches às mãos d'Ele". Se não foi Deus que enviou Quim até aqui, bem poderia ter sido, porque me sinto melhor do que nunca. Adormeço com este pensamento na cabeça e um sorriso nos lábios.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O Rapaz da Casa Amarela - Livro II - Capítulo 1

Uma Nova Experiência
Laika está sentada no meu colo. Olho em volta para o meu quarto. Fora duas semanas antes que eu conhecera Quim, aquele rapaz cá da aldeia. Primeiro ele parecia-me uma criança, infantil para os seus quinze anos, tantos como os meus. No primeiro dia que ele ali havia estado, tinha entrado pela janela. Eu chorar em frene a ele, porque desesperei de preocupação. Se aquele rapaz tivesse caído, isso traria ainda mais problemas à minha família. Na aldeia à muitos mexericos sobre os meus dois pais, Frederico e Carlos. Inclusive, há pessoas que dizem que somos uma família fruto do pecado. Eu só vejo amor entre os meus pais. Claro, fiquei revoltado quando nos mudámos de Lisboa para cá, por causa do emprego do Pai Carlos. ele é veterinário, e teve de vir para aqui. Nós seguímo-lo e viemos viver para a Casa Amarela. Foi ali, em frente à cama que ele despiu a camisola. a primeira coisa em que reparei foi na sua pele morena, e nos seus músculos definidos, provavelmente mantidos com uma vida agitada de brincadeiras e trabalho no campo. Depois, vi aquela longe e irregular cicatriz que lhe desce pelas costas, fruto de um acidente com uma foice. Já tinha ouvido pessoas dizer "escapei por um triz à foice da morte", mas não se podiam gabar de dizer isso no sentido literal.
Laika ergue a cabeça de repente e corre pelas escadas fora. eles estão aqui. Quim e Pluto, o pastor alemão que sempre lhe fez companhia, acabam de chegar. Ouço-o cumprimentar jovialmente os meus pais, sempre naquele seu tom de menino de nove anos de que eu aprendi a gostar tanto. Ele sabe aproveitar a vida, porque quase a perdeu, e está a ensinar-me a fazer o mesmo.
- Olha o que trouxe! - Exclama, erguendo na sua mão um gafanhoto, com um sorriso triunfante na cara.
O insecto salta-lhe da mão e voa pelo quarto, fazendo-me soltar um guincho de susto. Ele ris-se, divertido com o nojo que eu tenho de insectos, e corre a apanhar o gafanhoto. Quando se inclina, a camisola justa desenha-lhe a forma dos músculos das costas, e aquela linha inquietante que parte do seu ombro é realçada pelas pregas do tecido branco. Conheço-o há tão pouco tempo, mas não posso mais negar que me sinto atraído por aquele rapaz. Ele ergue-se, com o insecto preso entre os dedos.
- Pronto, vou deixá-lo ir... - Diz, abrindo a janela.
Outra coisa que me fascina é a quantidade de sabedoria que se esconde por trás daquele semblante infantil. Eu gosto de pensar que ele é uma criança, que pensa e sabe como um adulto, presa no corpo de um adolescente. Isso fascina-me. Aproximo-me ele, tocando ligeiramente com o meu braço no seu ombro. a acrescentar ao facto de se parecer uma criança, Quim é mais baixo do que eu um seis ou sete centímetros. Sinto-o estremecer um pouco. Ele olha-me, mas depois desvia a cara, sentando-se no chão em pernas à chinês. Chega a hora de praticar a minha imaginação. Quim contara-me que quando ele brincava, o mundo à sua volta transformava-se completamente, mas isso só era possível fazer com muita imaginação, porque é uma mudança na nossa mente, só para nós, que não afecta fisicamente o mundo que nos rodeia. Quando lhe disse que não conseguia fazê-lo, ele inventou este exercício. Sentamo-nos no chão, frente a frente, de pernas à chinês, de olhos fechados. Ele descreve o mundo imaginário à sua volta e eu tento retratá-lo na tela negra das minhas pálpebras fechadas. Costumo conseguir, mas hoje não consigo fechar os olhos. A única coisa que vejo quando o faço é a sua imagem. Aproveito, é o agora ou nunca. Inclino-me para a frente, seguro-lhe a cara com a mão e beijo-o. Ele desequilibra-se e cai para trás, mas os seus braços musculados e fortes envolvem-me, puxando-me para ele. Corresponde ao beijo, sofregamente. Os nossos lábios movem-se em sintonia e as nossas línguas acariciam-se mutuamente.
- Jaime? Jaime?! - Exclama a sua voz potente, acordando-e da minha fantasia.
ele está perto. Tão perto... Consigo sentir o aroma campestre da sua pele e o cheiro adocicado a morando do seu hálito.
- Não me parece que estivesses nas pirâmides do Egipto, neste momento... - Comenta, rindo-se.
- Não... Não estava, estava a imaginar outra coisa... - Murmuro.
- O quê? - Pergunta, curioso. - Nos biscoitos dos teus pais?
Cruza-se-me na mente de novo a imagem dele a puxar-me para si com os braços, a beijar-me.
- Não... Mais num amor impossível, que não é correspondido. - Comento.
Ele observa-me. Sei que me quer perguntar algo delicado. Incentivo-o com um gesto de cabeça a contar.
- Jaime, tu és como os teus pais?
- Gay?
- Sim.
- Sou.
- Tem a ver com o facto de terem sido eles a educarem-te?
- Não! Isso é algo que nasce connosco, só tenho a sorte de ter pais que me compreendem. - Afirmo. - Mas porque perguntas?
- Porque há uns dias... - Começou. - Passou-me pela cabeça um pensamento... Como seria beijar um rapaz... Eu já beijei a Clarinha, a neta da Dona Alberta, mas não foi nada de especial... E gostava de saber como é com outro rapaz.
Olho para ele incrédulo.
- Estás a pedir que eu te beije? - Interrogo.
AS suas faces morenas ficaram vermelhas, e a sua boca entre-aberta. Levanto-me, e faço-lhe sinal com a mão, para fazer o mesmo. Aproximo-me dele. Já sinto o calor do seu corpo, e parece que consigo ouvir um baixo eco do seus batimentos de coração vigorosos. Num curto passo, elimino os centímetros que nos separavam. O seu peito está junto ao meu. Uma das suas mãos pousa na minha cintura, como que para me impedir de fugir. Aproximo os meus lábios do dele e murmuro baixo:
- Queres mesmo fazer isto...?
Ele engole em seco e gagueja um sim quase inaudível. Finalmente, os meus lábios tocam os seus. Tal como na minha fantasia, a sua língua não demorou a procurar a minha, acariciando-a, saboreando os meus lábios e eu os dele. Subitamente, uma rajada de vento provocada pela porta do quarto a ser aberta surpreende-nos, quebrando o beijo.
- Os biscoitos estão...! Cristo, oh, desculpem! - Suplica Frederico, envergonhado.
Eu e Quim entreolhamo-nos. Ambos estamos tensos, muito direitos. Sustemos a respiração. Ele é o primeiro a tentar falar, mas não consegue. Afasta-se saindo do quarto. O meu pai olha-me surpreendido, mas encorajando-me. Eu tenho exactamente a mesma reacção de Quim e saiu sem dizer uma palavra.

O Rapaz da Casa Amarela - Livro I - Capítulo 3

Carlos, Frederico e Jaime
O interior da casa é agradável e limpo. Olho à minha volta ainda medroso. Na minha mente ecoa apenas uma pergunta.
- Porque é que a Avó diz que o Demónio caminha nesta casa? - Interrogo.
Jaime estremeceu, mas Carlos e Frederico pareciam habituados.
- Porque para a tua avó, o que está escrito na bíblia é que os gays são fruto do pecado e do Diabo. - Comenta Frederico.
- Gays? - Pergunto. - O Ti Araújo nunca me ensinou essa palavra...
- O termo mais correto seria homossexuais. - Diz Carlos.
Sinto a cara ficar vermelha, e paro, envergonhado, como se algo de mau tivesse sido dito.
- Que se passa? - Interpela Frederico.
- A avó diz que não se pode falar em... bom... naquela última parte da palavra homo...
- Oh, em sex... - começou ele.
- Sim! Isso. - Cortou Carlos. - Percebo, a tua família é conservadora. Mas não há mal em falar nisso. Fiquemos pela palavra gay, que é mais usada. Um homem gay é um homem que gosta de outros homens, como outro homem gostaria de mulheres.
- Como vocês...?
- Exacto. - Confirmou Frederico, envolvendo a cintura de Carlos com um braço. - Mas fora isso, somos como todas as outras pessoas. O Carlos, por exemplo é veterinário e eu sou arquiteto.
Eu observo-os curioso, sentando-me à mesa. A casa por dentro é tal e qual as casa decoradas de forma moderna que eu vejo nos filmes americanos que passam na televisão. Frederico começa a pôr os biscoitos num prato enquanto Jaime põe os guardanapos e Carlos vai buscar alguns copos. É engraçado vê-los a trabalhar em conjunto. Um verdadeiro esforço de equipa, digno de uma brincadeira de piratas ou de aeronaves.
- Então, Quim, conta-nos mais sobre ti. - Incentiva Frederico.
- Ora, tenho quinze anos, o Pluto é o meu melhor amigo. A Avó Alzira é quem trata de mim e o ti Araújo ensina-me muitas coisas.
- Quinze? - Interroga Jaime, surpreendido. - Pareces mais novo...
- Filho! - Exclamam os dois homens em uníssono.
- Que foi, ele fala como uma criança, age como uma! - Comenta, cruzando os braços.
- Mas eu gosto de ser criança! - Defendo. - Já dizia Eça de Queiroz que "as crianças são os únicos seres divinos que a nossa pobre humanidade conhece. E, para concebermos uma ideia das coisas do Céu, só temos realmente as criancinhas..."!
Cruzo os braços à espera que Jaime responda, mas tudo o que ele consegue fazer é abrir e fechar a boca sem produzir nenhum som. Faz lembrar o meu peixinho dourado a navegar no seu aquário todo o dia, lá no meu quarto. Frederico e Carlos entreolham-se, sorrindo.
- Então, foi o teu Tio Araújo que te falou do Eça de Queiroz? - Pergunta Frederico, lançando um olhar a Jaime que transpira a "não tens mais que aquilo que pediste".
- Sim. Disse-me que ele foi um dos grandes escritores portugueses, como o Fernando Pessoa, o Luís Vaz de Camões... O Ti Araújo ensina-me de tudo um pouco. Foi ele que me falou dos reis, rainhas, princesas, dragões, cavaleiros, piratas, corsários, do Holandês Voador, dos insectos, dos animais, das aves, das montanhas, dos rios, dos mares...
- Uau! Tanta coisa! - Diz Jaime, sarcástico.
- Já percebi que não gostas de mim. - Respondo, encolhendo os ombros.
Jaime retira-se, subindo para o segundo andar. Frederico e Carlos pedem desculpa pelo comportamento dele.
- É normal que ele se sinta mal se foi para longe dos amigos... - Comento.
- Pois... Oh, como é que tu soubeste disso? - Pergunta Carlos, surpreso.
- Bom, vocês têm um sotaque totalmente alfacinha. E eu conheço a aldeia de uma ponta à outra, como a palma da minha mão, e nunca vos tinha visto cá, por isso calculei que tivessem para cá vindo há pouco tempo...
- És observador... - Elogia Frederico.
- Vou falar com ele. Se calhar precisa de uma migo... Posso? - Peço.
Eles dão-me permissão para ir ter com Jaime. Indicam-me o caminho para a porta do quarto, que está trancada. Ao lado, vejo uma porta aberta que dá para um outro quarto. Agora imagino-me como um explorador como o Indiana Jones dos filmes americanos que passam na TV. Ajeito o meu chapéu imaginário. Há minha volta a casa começa a tornar-se uma ruína, dominada por heras e trepadeiras. Sorrio sensualmente e caminho em direcção à janela. Abro a armação que resta de madeira e passo para o lado de fora, mantendo-me encostado às paredes. Lá em baixo, o chão começa a ficar mais longe. Já não estou no segundo andar de uma casa, mas sim no topo de um torre antiga. O meu pé escorrega, deixando cair algumas pedras, que embatem nas rochas lá em baixo, relembrando-me que é morte certa se as seguir. Mais um pouco, mais um pouco e finalmente chego à janela que quero. E a Casa Amarela deixa de ser a ruína de um forte romano para voltar a ser a Casa Amarela. Bato levemente no vidro. Jaime abre a janela, mas as portadas abrem para fora, empurrando-me. Seguro-me à armação de madeira robusta e fico pendurado.
- Oh deuses! És doido! És louco! - Berra Jaime.
- A porta estava trancada. - Informo sorrindo. - Não te mexas.
Ponho os pés na zona saliente perto do vidro. Sim, dá-me apoio suficiente. Solto primeiro uma mão e seguro-me ao lado da portada. Passo um pé para o outro lado. Agora estou de frente para o interior. Impulsiono a portada para se fechar, e atiro-me para dentro do quarto no último segundo antes de esta bater com estrondo na moldura da janela. Aterro em cima de Jaime. ele levanta-se de um salto, berrando.
- És doido?! Podias-te ter morto! - As lágrimas começam a inundar-lhe os olhos.
- Mas estava tudo sobre controlo! - Exclamo sorrindo.
- Tu és completamente louco! Deves ter um parafuso a menos só pode! Se tu te matasses eu nem sei o que...!
As lágrimas começam transbordar-lhe pelos olhos, aproximo-me rapidamente e envolvo-o com os meus braços.
- Eu estou bem. - Sussurro, por entre os seus cabelos suaves. - Eu estou bem. Não chores. Eu estou bem.
Ele ainda fica mais uns minutos assim, agarrado a mim a chorar. Finalmente acalma-se.
- Ugh, sujei-te a camisola toda... - Comenta.
Dirigi-se a uma cómoda de madeira branca e entrega-me uma t-shirt com um decoto em "v" que me chegaria facilmente até meio do peito. Eu hesito.
- Não queres mudar-te? Não tem problema eu empresto-te a camisola, desde que não voltes a fazer uma loucura daquelas... - Diz, passando a mão pela cara para limpar os restos de lágrimas.
- Não é isso.. só não me sinto bem em despir-me em frente a outras pessoas... - Comento.
- Oh, por favor, tiveste coragem de te pendurar ali na janela e agora tens vergonha de tirar a camisola? - Interroga incrédulo.
Eu dispo a minha camisola. Inclino-me para apanhar a t-shirt que ele pousara na cama. Ouvi-o aspirar o ar de surpresa. Não! Ele viu as minhas costas!
- Meu deus... o que é que... tu tens uma...
- Sim, uma cicatriz. - Respondo, confirmando que o traço vertical irregular que ele vê desde o meu ombro esquerdo até à base das minhas costas é a marca de uma ferida antiga. - Quando eu era mais novo fui esconder-me para o meio do trigo do meu avô... Era altura da ceifa e só me apercebi dos homens tarde demais. Um deles, ao ceifar o trigo, apanhou-me as costas com a foice... Cheguei ao hospital a tempo, mas quase morri pelo caminho.
Desta vez, o meu tom de voz era mais sério e grave, quase como o de um adulto. Era raro as pessoas verem aquela minha faceta.
- Sou aquilo a que tu chamas criança, porque quero aproveitar ao máximo a vida que Deus decidiu não me tirar naquele momento. - Remato, vestindo a t-shirt.

terça-feira, 19 de abril de 2011

O Rapaz da Casa Amarela - Livro I - Capítulo 2

A Casa Amarela Perto do Bosque
Domingo. Típico dia da missa. A Avó acredita em Deus. Diz que ele é bom para quem se porta bem, e castiga quem se porta mal. Faz-me lembrar o Pai-Natal. Quando disse isso à avó, ela benzeu-se e disse que o Pai-Natal não existe, mas Deus sim. Eu nunca vi o Pai-Natal. Nem nunca vi Deus. Mas já vi e ainda vejo a minha avó, por isso acredito nela e no que ela diz. A missa passa sempre depressa para mim. Gosto de ouvir o Padre Joaquim falar. Acho que isso é porque ele tem o mesmo nome que eu? A minha avó menciona sempre que eu podia ir para padre. Mas eu não quero ficar todos os dias em pé, em frente à aldeia. O Padre Joaquim já se mete comigo por causa disso, mas eu mantenho-me firme nas minhas ideias. No entanto, hoje é um Domingo diferente. Há um burburinho no ar. É mexerico, pois com certeza. A avó e as amigas adoram falar sobre a vida das outras pessoas. Vejo a Dona Armanda da Mercearia, o Zé da Serralharia, a Dona Lurdes da loja de roupa, o Sr. Bicas do café da aldeia, o Sr. Armando da loja das sementes, a Dona Alberta, a vizinha da rua de cima e a neta dela, a Clarinha, e os pais dela, a senhora Joana e o Sr. Cândido. Conheço todas as caras, vou vendo, sorrindo em cumprimento. e então vejo-o, lá ao fundo. Deve ser dele que estão todos a falar. É um rapaz novinho, talvez quinze anos como eu? De semblante sério, a meditar, olha fixamente para o crucifixo no altar, com os seus olhos verdes. As suas mãos estão entrelaçadas, apertando-se mutuamente. Os seus cabelos castanhos são lisos e um pouco despenteados. Tem vestida uma camisola fina, com um decote em "V" azul, e umas calças de ganga brancas. Por momentos, os seus olhos desviam-se do crucifixo e cruzam-se com os meus, apesar de não virar a cara para mim. Eu desvio o meu olhar e tento concentrar-me nas palavras do Padre Joaquim.

Algumas horas depois da missa, não consigo deixar de perguntar à minha avó quem é aquele rapaz, possível companheiro de brincadeiras. Ela não me responde.
- Avó, porque é que eu não o conheço? - Interrogo.
- Porque ele é o rapaz que vive na casa amarela perto do bosque... E não te quero a andar com ele, que é má companhia.
- Isso é o que as gentes da aldeia dizem! - Riposto - Não quer dizer que os mexericos sejam verdade!
- Mais respeito que é bonito, meu menino! - Exclama a avó, trancando-me a boca com o olhar. - Quero-te longe dele, daquela casa, daqueles... Daquela família! Ouve o que te digo, filho, naquela casa caminha o Demónio como caminha Deus no céu!
Estremeço de medo, e levo uma garfada de arroz à boca, engolindo em seco. Pluto, debaixo da mesa, também gane, assustado. Finalmente, vejo-me de novo na segurança do quintal das traseiras da casa da avó. Hoje decido ser um mago, que combate monstros. Pluto ladra em jeito de aprovação. imagino-me num campo de batalha enevoado pelo fumo de fogos distantes. Caminho pela terra vermelha de sangue. Um monstro retorcido tenta atingir-me, mas lanço-lhe uma bola de magia que o faz desvanecer em pleno ar. Olho ao longe e vejo o bosque a arder, a Casa Amarela em ruínas. A fantasia desvanece-se e fico a observar aquela casa. Lá ao longe, nada mais parece do que um rectângulo da cor do Sol. Olho em volta. A avó deve estar naquele momento a ver televisão e a fazer croché. Observo Pluto.
- Também podes vir. Mas quieto e calado. Não quero nem um ganido enquanto eu não disser!
Ele sentou-se, com a língua de fora, obedecendo e não fazendo nenhum som. Caminhamos então pela estrada de terra batida até ao cimo da colina onde se encontrava a casa. encostamo-nos ao muro, em silêncio ouvindo. Está uma mangueira ligada e posso ouvir a água a bater em algo, talvez um carro.
- Freed! - Chama uma voz masculina. - Onde é que puseste o detergente para o carro?!
- Acho que está no barracão das ferramentas! - Responde outro homem.
Estou prestes a dar um passo quando as orelhas de Pluto se colam ao seu pescoço. Algo não está certo. Das traseiras da casa, sai um Serra-da-Estrela enorme, do tamanho do meu companheiro. Também esse cão tem as orelhas para baixo, coladas ao pescoço, a cauda erguida e os dentes arreganhados. Pluto rosna e eu seguro-lhe a coleira.
- Pluto, quieto. - Murmuro.
O outro cão, de pêlos castanhos rosna em protesto e ladra. A mangueira desliga-se e ouço uma porta de madeira ser aberta. O outro cão ladra de novo e Pluto responde da mesma forma.
- Pluto, quieto! Senta! - Ordeno-lhe.
Ele não me obedece.
- Pluto, quieto, senta! Menino mau! Senta, ou ficas sem biscoitos durante uma semana! - ameaço, com sucesso.
Apesar de se sentar, continua de dentes arreganhados e ladra ao outro cão. O animal começa a trotar na nossa direcção, e o o meu aperto na coleira de Pluto começou a afrouxar.
- Laika, quieta! - Grita uma voz grave por trás de mim.
O cão, que afinal é uma Cadela, trava bruscamente, gane e senta-se. Eu giro sobre os meus calcanhares. Um homem loiro, de olhos azuis, observa-nos. Olha para Pluto de forma cuidadosa.
- oh...Mm... olá...? - Cumprimento.
- Olá...
- Eu sou o Quim. Moro naquela casa.- Apresento-me, apontando para a casa da avó, que se via lá ao longe.
Um outro homem de cabelos castanhos e olhos verdes apareceu vindo da casa.
- Pareceu-me ouvir-te gritar para a Laika, o que é que... Ora, ora, o que temos aqui?! - Exclama o recém chegado, aproximando-se de Pluto.
Eu abro a boca, para o avisar para ter cuidado. Mas Pluto já tem as orelhas erguidas no ar e a cauda a abanar, à espera de brincadeira. O homem começa a fazer-lhe festas, fazendo-o rebolar-se no chão de contentamento. Daí a pouco Laika junta-se, ciumenta, à brincadeira.
- Olá, Quim. Eu sou o Carlos e este é o Frederico. - Diz ele, dando-me um aperto de mão. - é bom saber que há aqui alguém interessado em conhecer-nos na zona...
- Pois... A avó e as amigas dela adoram mexericos... - Digo, revirando os olhos e provocando-lhe uma risada.
- Ah, e este é o Jaime, o nosso filho. - Apresenta ele, estendendo a mão em direcção ao rapaz que eu vira na missa.
- O vosso... O vosso filho? - Pergunto, surpreso.
- Sim, eu e o Carlos somos casados. - Informa Frederico.
Carlos olha para mim, testando-me, mas continua a brincar com os cães.
- Sim... Tu... - Frederico parece ficar atrapalhado.
- Um homem casa com uma mulher... - Comento.
- Mas pode casar com outro homem se o amar. - Argumenta Jaime, encolhendo os ombros.
A sua voz é também grave, mas não tanto como a do pai. Como a dos pais. Sinto-me confuso. Eles percebem.
- Queres entrar, para te explicarmos melhor? - Convida Carlos. - Acabei de fazer biscoitos.
Sinto-me tentado, mas relembro-me das palavras da avó.
- A Avó Alzira disse que na vossa casa caminhava o Demónio como caminha Deus no céu... - Solto, tapando a boca com as mãos de seguida.
Eles sorriem tristemente.
- Não te preocupes, Quim, não te fazemos mal. - Garante Carlos, mostrando-me um terço que tem ao pescoço. - E só entras se quiseres.
Olho para Pluto. Sempre confiei nele para julgar o carácter das pessoas. Opto por segui-los para a Casa Amarela.

O Rapaz da Casa Amarela - Livro I - Capítulo 1

Uma Espada e um Barco
- Argh! - Berra o pirata à minha frente. - Não vais tomar o meu navio!
Ele empurra-me cada vez mais para a ponta da prancha. Sinto os tubarões a rondarem as águas agitadas lá em baixo, como se fossem lobos dos oceanos. Agito freneticamente o meu sabre à minha frente, afastando as investidas da cimitarra do capitão corrupto. Corto uma das tranças desgrenhadas da sua barba, o que o enfurece ainda mais.
- Ah-Ah! - Exclamo. - Não vais sair impune dos teus crimes! Pelo Rei e pelos corsários!
Finalmente, consigo empurrá-lo para o lado, fazendo-o cair da prancha abaixo. Corro de novo para cima do convés, sem ficar para ver o mar manchado de sangue. Assim que vêem o seu capitão caído ao mar, os piratas começam a dispersar. Olho para o meu primeiro-tenente. Um corte adorna-lhe a cara, dando-lhe um ar temível.
- Senhor Pluto, creio que tem um novo troféu de batalha! - Elogio, guardando o meu sabre e caminhando para o gabinete do pirata.
- Auf! - Responde o meu primeiro-tenente.
- Quiiim! Vem almoçar! - Grita a minha avó da varanda da torre do castelo que se distingue ao longe.
O meu estômago ronca em resposta. A torre do castelo volta a ser a antiga casa de pedra de aldeia, o mar volta a ser a terra castanha do quintal, e o barco volta a ser o barracão velho e decadente de madeira escurecida pelo tempo. Pluto, o meu pastor alemão, olha para mim, desejoso de comer.
- Velho sarnento esfaimado! - Gracejo. - Quem chegar primeiro fica com o bife maior!
Ele ladra-me aceitando o desafio e corremos lado a lado, atravessando a garagem, para subir as escadas exteriores que levam à parte de habitação da casa. O longo corredor e sinuoso parece escuro e ameaçador aos meus olhos encadeados pela luz. Felizmente, a cozinha é mesmo à entrada e não preciso de caminhar pela goela daquele Dragão adormecido. O cheiro de batatas fritas e carne grelhada desperta-me da nova fantasia que ameaçava dominar a minha mente.
- Aposto que tantas brincadeiras te dão fome, filho. - Comenta a Avó Alzira.
A sua cara enrugada pelo tempo olha-me com carinho. Eu respondo com um sorriso satisfeito, tão grande que me obriga a fechar os olhos, e agito a cabeça energicamente.
- Sim, sim, sim! - Confirmo. - Muita fome. E hoje eu cheguei primeiro que o Pluto!
O cão ladra em protesto à minha frase proferida com orgulho.
- Mas podes dar-lhe o bife maior... Ele quer ser maior! E precisa de curar o corte que os piratas lhe fizeram!
- Oh, ouvi piratas?! - Exclama a voz fingidamente assustada do Ti Araújo, o irmão mais novo da Avó.
Corro para o cumprimentar. Nas mãos traz uma espada de madeira rudimentar, que faz os meus olhos brilhar. Ele agita-a levemente no ar.
- Onde estão esses escorbutosos dos mares?!
Eu rio-me.
- Esses escor... escor... quê? - Pergunto.
- Escorbutosos, que têm escorbuto. - Informa, dando-me a espada para a mão.
- o que é isso? - Interrogo, curioso.
- É uma doença dos mares terrível, que te faz inchar as gengivas e cair os dentes todos!
- Araújo! Por favor, o menino vai comer agora! - Exclama a avó, repugnada.
- Iác! - Replico. - Eu não quero ter escorbuto!
- Então tens de comer muita fruta fresca! - Conta o Tio.
- Ah, mas eu gosto da fruta fresca da Dona Armanda da mercearia! - Afirmo. - A sério, podes perguntar à Avó, ao Pluto e à Dona Armanda!
- oh, então acredito em ti. - Diz ele, encaminhando-me para a mesa da cozinha. - Mas ala, lavar as mãos para merendar, que isto é preciso crescer-se forte. E depois, vais ajudar-me a construir um barco com uma tábuas velhas que o Zé da serralharia me trouxe, que te parece?!
- Siiim! - Berro, entusiasmado.
- Mas tende cuidado com os pregos, que isso é coisa perigosa! - Avisa a avó.
O resto da tarde passo-a com o Tio, a construir o malfadado barco. Pluto ajudou a levar algumas tábuas leves e tudo! Eu gosto de conviver com o Ti Araújo porque ele me conta muitas histórias. Ele já foi professor aqui na aldeia e sabe muitas coisas. Foi ele que me contou sobre os cavaleiros, sobre os reis, os dragões, as princesas, os piratas, os corsários e os escorbu... escorbu... os que têm escorbuto! Hoje conta-me que os corsários eram os heróis do mar. Perguntei se eram heróis do mar como nós portugueses cantamos no nosso hino. Ele diz que não, e acrescenta que como nós portugueses ou melhores não há, que fomos os primeiros a ir para o mar, a passar as tormentas das tempestades. Pergunto se o pai e a mãe também tinham ido muito ao mar. Ele confirma que sim, que eles lutam pelo país na marinha do nosso povo. E faço a pergunta que sempre fiz, desde muito novo: Porque é que o pai e a mãe não voltaram. Ele não responde e começa a ensinar-me coisas. A escola da aldeia fechou há muitos, muitos anos, e a mais próxima que havia, era noutra aldeia e também fechou. Por isso nunca pude ir para a escola, mas tenho o Ti Araújo, que é um professor dos melhores que há! ele fala-me de muitas coisas! Até conta histórias de fantasmas, como a do Holandês Voador, um navio fantasma que assombra os oceanos. Está decidido. Na próxima brincadeira, eu, o Corsário Descobridor Português Capitão Joaquim Fernandes e o meu fiel Primeiro-Tenente Pluto vamos procurar pelo Holandês Voador, e livrar os mares da sua maldição!