Depois desse dia, tornou-se um hábito começar a passar tempo com Quica e com Speedy. eles eram inseparáveis. Desde a actuação que eu não parava de pensar na forma como Julie, Francisca e Daniel se tinham movido em palco. Um dia, Quica convidou-me para ir ter com ela ao auditório da academia. Fiquei surpreendido com o palco, orlado de cortinas vermelhas de tecido pesado, bordado a linha dourada. A madeira do palco estava protegida por uma camada de verniz preto. Quando me aproximei, ouvi alguns acordes de guitarra, e duas notas de piano. Quica e Speedy estavam sentados perto do instrumento, ela a tocar nas teclas, ele com a guitarra na mão.
- Oh, sempre vieste. - Cumprimentou ela, correndo para ao pé de mim.
- Porque é que me chamaste para aqui? - Perguntei, curioso.
- Oh, nada era só para te mostrar uma música...
Eu sorri e sentei-me no banco do piano.
- Andas a trabalhar numa nova? - Interroguei.
- Sim... Mas tenho um bocadinho medo de a cantar...
- Porquê? - Exclamei.
Speedy mexeu-se desconfortavelmente na cadeira.
- Ela acha que eu só estou a dizer que canta bem a música por ser o irmão dela... - Explicou ele.
- Oh, mas tu cantas bem... - Concordei.
- Sim, mas não sei se estou à altura de cantar a Bring Me to Life, dos Evanescence, tenho medo de a minha voz não chegar à da Amy Lee.
Eu ri-me, virando-me de frente para o piano.
- Tu tens uma óptima voz. Mostra lá o que sabes fazer! - Incentivei, começando a tocar.
Sem dar por mim, os meus dedos percorriam as teclas brancas e negras, soltando a melodia aguda e melancólica. Senti os olhos de Speedy e de Quica em cima de mim. O meu coração parou, e retirei as mãos do teclado, de um salto.
- Tu sabes tocar?! - Perguntou Speedy.
- Não! - Cortei, friamente.
- Cala-te! Estavas a tocar tão bem! - Comentou ela.
- Desculpa, não volta a acontecer... - Avisei.
- O quê?! Mas porquê?! - Interrogaram em uníssono.
Suspirei, voltando a sentar-me no banco do piano, sem forças para me manter em pé, ao recordar-me do meu passado. Eles observavam-me, esperando pela minha fala.
- Há seis anos, os meus pais iam a um recital da escola, no qual eu ia participar. Eles atrasaram-se um pouco. A minha tia Carla chegou primeiro que eles. O recital começou sem que eu os visse na plateia. no primeiro acto eu tinha de tocar piano e cantar. Correu bem. Mas eles não estavam lá. E quando reparei, já nem a minha tia estava na plateia. Durante o intervalo, tentei encontrá-la. Ela estava em estado de choque, abalada, a tremer. Perguntei-lhe o que se passara. Ela disse que o papá tinha acelerado um pouco mais com o carro para chegar a tempo... - Senti a voz começar a falhar-me. Tomei um gole de ar para recuperar e e continuei. - O carro despistou-se, bateu num outro automóvel e depois foram atingidos por um camião. Eles morreram no acidente. Desde então, assumi que eles tinham morrido porque queriam ir ao recital, e senti que a minha voz era a culpada da morte deles... Prometi a mim mesmo que nunca mais ia voltar a tocar ou a cantar... Desde então que não tenho tido forças para tal...
Speedy deu-me uma pequena pancada amigável no ombro e Quica limpou as lágrimas dos seus olhos. Sorri tristemente.
- Isso é um dispara-te. - Comentou uma voz grave, por trás de nós, que nos fez saltar. - Não devias desperdiçar o teu talento por causa disso. As pessoas vêm e vão. É a lei da vida. Mas enquanto cá estás podes marcar o mundo com o teu talento como os teus pais marcaram a tua vida.
Olhei para trás. Um homem nos seus quarenta anos, com alguns cabelos brancos saiu de trás de um cortinado. Quica segredou-me que era um professor de música, dança e teatro.
- Fazemos assim: Amanhã, às cinco, vens aqui ter. Vamos ter uma reunião do Clube de Artes de Performance. Devias vir. - Convidou.
- Não, não, obrigado mas não. - Recusei, agitando vivamente a cabeça.
Ele olhou para mim. Algo naquela expressão era-me familiar.
- Martim... Devias tentar seguir em frente. - Disse, virando costas.
O meu coração bloqueou, e retomou a corrida rapidamente. A pergunta que me ecoava era como é que aquele homem que eu não conhecia sabia o meu nome. Speedy e Quica também pareciam não saber a resposta, pois estavam tão surpreendidos como eu.
Ergui-me do banco, apoiando a mão nas teclas. Senti a suavidade do marfim sintético e envernizado uma última vez antes de correr para a aula.
2 comentário(s):
Acho interessante o facto de, em todas as tuas histórias, haver sempre uma morte de um familiar. Porquê?
De resto está óptimo como sempre. xD
Lol, por acaso não me tinha lembrado disso... Acho que é para adicionar um pouco de tragédia, segredos por contar... ;p Mas já estou a trabalhar numa próxima história e não há mortes de familiares, podes ficar descansado x)
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