Salvai-me do Pecado
O burburinho da igreja é me tão familiar... Todos os domingos, toda a aldeia lá vai. Conheço todos. Todos me conhecem. Mas há algo de diferente em mim. A Avó ontem esteve a falar... Não, a discutir comigo, sobre o Jaime. Ela não quer que eu o veja. Ela repugna aquilo que os pais dele são, aquilo que ele é... Aquilo que eu sou. Não. Não posso ser. Estou confuso, assustado. Mas Deus é claro como água. Aquilo que eu fiz... Os desejos que tenho...
Senhor, tende piedade mim... Senhor, tende piedade porque pequei contra Ti, salvai-me do pecado, salvei-me do fogo do inferno, limpai a minha alma destas profanidades. Ajudarei todos. Sempre o fiz, e continuarei a fazê-lo. Por favor, ajudai-me a ser mais forte que o meu corpo, tornai o meu espírito apto a resistir aos desejos da carne. Sou um mero humano, mas dai-me forças.
Lá está ele. Arranjado para a missa. Camisa azul clara, com as mangas dobradas, calções brancos, ténis azuis. Os seus cabelos castanhos, como sempre, estão cuidados. Rezo uma vez mais para que Deus me dê força.
Depois da missa, as pessoas cumprimentam-se, falando sobre os acontecimentos banais da vida quotidiana. Apresso-me a sair dali, de mãos nos bolsos. Sinto alguém puxar-me o braço. A sua mão suave é-me familiar.
- Quim! - Exclama. - O que se passa?
- Olá Jaime. Não se passa nada. Não se devia ter passado nada. - Suspiro, libertando-me.
- Que queres dizer? - Pergunta, irrequieto.
- Isso mesmo que ouviste. Foi um erro. - Digo por entre dentes, olhando para o chão.
- Afasta-te do meu neto. - Rosna a minha avó, puxando-me pelo braço.
Eu segui-a, caminhando ao lado dela.
- Que é que o filho dos Infernos te queria? - Pergunta, indignada. - Não me digas que se estava a fazer a ti! É já uma lambada da esquerda que nem sabe donde veio a direita!
- Avó! Pára! - Exclamo. - Que mal te fez ele?!
Ela fica a olhar para mim, com os seus olhos pequeninos e a sua boca desenhando um "o".
- Agora és insolente comigo? - Interroga, chamando a atenção de alguns olhares.
- Não é nada disso! Mas o Jaime, o Frederico e o Carlos não te fizeram mal, porque os tratas assim?! - Exclamo.
Ela olha-me surpreendida. Oh não... Acabei de lhe contar que tinha estado naquela casa. Acabei de admitir o que fiz.
- É esse o nome daqueles demónios?! - Exclama, cuspindo no chão. - Fica sabendo que quem pôs pé naquela casa, não é digno de entrar nos meus terrenos!
O meu peito parece comprimir-se num único ponto, e explodir de uma vez. Dou um passo atrás, pois as suas palavras atingem-me como uma chapada.
- Estás a dizer que...
- Sim, estou a dizer que em minha casa não entras! Não enquanto não me saíres daquela igreja sem pecado no corpo!
- Dona Alzira, Dona Alzira, tenha calma! - Socorre o Padre Joaquim, que fora chamado à atenção pelos gritos da minha avó.
- Não tenho calma não! A Besta está a levar o meu neto! - Diz, com lágrimas nos olhos.
- Avó, tenha calma, olha o seu coração! - Aviso, preocupado, segurando-a nos ombros.
- Não me toques! - Grita, sacudindo-me. - Não me toques! Não me toques! Ai que me morro aqui!
A sua mão aperta-se contra o peito e caiu de joelhos, amparada pelos braços do Padre. Ouço a voz de Jaime gritar para chamarem uma ambulância. Uma voz feminina com sotaque britânico que eu nunca ouvira pede às pessoas para se afastarem e lhe darem espaço para respirar. Ela ajuda o Padre a segurar a minha avó. O meu corpo tenta mexer-se para a amparar, mas na minha cabeça a sua ordem impede-me de o fazer. Não me toques, não me toques, não me toques! A rejeição entranha-se-me no peito. As sirenes ouvem-se momentos depois. A multidão começa a dispersar e eu caminho para a igreja, sem saber o que fazer. Ajoelho-me, apoiando as mãos no altar.
Cordeiro de Deus que tiras o pecado do mundo tem piedade de mim.
Confesso a Deus, todo poderoso, que eu pequei, muitas vezes, por palavras... actos... omissões... Por minha culpa... - as lágrimas escorrem-me pelos olhos que retêm a imagem da minha avó caída. - minha tão grande culpa, peço aos anjos e santos e a vós irmãos... - na minha mente vejo a cara sorridente de Jaime. - Que rogueis por mim a Deus, nosso senhor.
Em nome do pai, do filho e do Espírito Santo, como era no princípio... - Vejo-me a brincar inocentemente com Pluto, a aprender coisas com o ti Araújo. - agora e sempre, amén.
Durante o resto dessa tarde, rezo mais. Não se ouve ninguém entrar na igreja, nem mesmo o Padre voltou para fechar os portões. Quando finalmente oiço passos é o Ti Araújo.
- Que Deus... - Diz, entre soluços - Que Ele... Tenha a... sua alma em paz...
Irrompo em lágrimas e soluços, agarrando-me ao meu tio.
- Não! Não! Não! Não! Que fiz eu! Que fiz eu! - Grito, ouvindo o eco da minha voz distorcida. - Que fiz eu!?
- Não, Quim, não foste tu. Tu não tiveste culpa... - Acalma-me, aconchegando-me.
Já não consigo articular palavras. Agora só consigo libertar gritos de dor, uma dor que me dilacera o Espírito, uma dor que me destrói o coração. Aperto mais o corpo do meu tio contra mim. Por momentos desejo que aquele fosse o corpo de Jaime. Grito de novo, frustrado comigo mesmo. As últimas palavras esfaqueiam a minha mente, espezinham-na. Só consigo ouvir a sua voz gritar para não lhe tocar, enquanto cai inanimada no chão, nos braços do Padre.
2 comentário(s):
Quase que chorei. :'(
Foi um capítulo um bocado difícil para mim de escrever. Também me senti assim, e ainda mais porque me senti na pele do Quim...
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