Memórias de um Coração Choroso
Observo as estátuas da igreja. O meu tio saiu há pouco tempo. O meu coração bate vagarosamente. As memórias correm-me pela cabeça.
Choro desalmadamente, ao sentir a lâmina dilacerar-me as costas. O Ti Manel agarra-me, gritando desesperado pelo que acontecera. Primeiro levam-me para dentro da casa, tentando parar o sangue enquanto esperam pela ambulância. Ficam preocupados quando o meu choro começa a esmorecer. Já mal tenho forças para soluçar. O ardor percorre-me as costas inteiras. A minha avó entra pelo quarto adentro, berrando.
- Que fizeram ao meu menino?! Ao meu querido menino? Que lhe fizeram?!
Ela chora, e faz-me chorar. Finalmente o médico chega. A minha avó pede para ele me curar. Ele diz que tem de cozer a ferida, mas que não há tempo para esperar que a anestesia faça efeito. A minha avó grita-lhe para não me fazer sofrer mais. Arrastam-na para fora do quarto. Sinto cada picada da agulha do médico. Mas já não tenho forças para gritar.
Estou numa sala branca. É o hospital para onde me levaram depois de me terem cosido. Mas desta vez, estou mais crescido. Foi quando torci o calcanhar a saltar nas rochas do rio. Vejo a minha perna suspensa. O ti Araújo entra, seguido da minha avó, preocupada. Sorrio-lhe para a acalmar, enquanto ela enterra a sua cabeça no meu peito, chorando.
Vejo o Ti Araújo à minha frente. Estamos na casa da árvore acabada de construir. A minha avó chama-nos lá em baixo, para irmos lanchar. Mas nenhum de nós se mexe. Temos medo que alguma coisa caia. Sou o primeiro a erguer-me. A tábua cede e caio no chão, magoando um braço. Rebolo-me no chão queixando-me, com lágrimas nos olhos.
- É bem feito, que é para ver se aprender, palhaço! - Exclama a minha avó, rindo-se. - Agora vê lá se te recompões!
levanto-me e sigo-a. Ela dá-me uma fatia generosa de bolo com chocolate.
Caminho pela igreja vazia. Um soluço escapa-me. Vou para o meu local preferido. A torre do sino. Sento-me com as pernas penduradas lá para fora, encostado ao sino.
A Clarinha pede-me um beijo. Olho para ela, escandalizado.
- Aqui, na casa de Deus? - Pergunto, indignado.
- Sim... Ele não se importa! O meu pai e a minha mãe também o fazem.
- Está bem...
Os nossos lábios tocam-se timidamente. O sino toca, sobressaltando-nos. Ela grita de medo e começa a chorar. Eu seguro nela e levo-a lá para baixo. A minha avó já lá está à nossa espera, com cara de poucos amigos.
Lá em baixo, posso imaginá-la a ralhar-nos. Um pouco mais à frente é onde ela tombou esta manhã. Tombou para nunca mais se levantar. Deus, perdoa-me. Hoje uma alma foi ter contigo por minha causa. Não quero ir para o Inferno. Mas que mundo é este onde todos me olham como se eu não merecesse sequer falar contigo? Não quero ficar na terra. Não quero ficar neste Inferno. Ergo-me, segurando-me com uma mão ao pilar. Fecho os olhos. Oiço alguém correr. Oiço uma porta bater. Leva-me contigo. Preciso de falar com ela. Não quero viver sem ela. Preciso de fazer as pazes com ela. Preciso de lhe dizer que nunca mais vou pecar.
Os passos ficam mais perto. Gritam o meu nome. Deixo os meus pés escorregarem. mantenho os meus olhos fechados. Sinto o vento nos meus cabelos. Sinto a gravidade deixar de fazer efeito. O chão aproxima-se, consigo senti-lo. E o meu peito atinge-o. Tudo fica negro.
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