A Casa Amarela
Observo o pequeno cordeiro que adormecera no meu colo. O Ti Araújo observa o céu. Ele, tão bem como eu, sabe que dia é hoje. Um ano. Faz hoje exactamente um ano que a Avó faleceu. Faz hoje um ano que eu me tentei atirar do campanário da Igreja. E há um ano que não os vejo. Nem o Frederico, nem o Carlos, nem o... Jaime. Pura e simplesmente desvaneceram-se da aldeia. E sempre que tento trazer o assunto ao de cima, ninguém me diz nada. Ou ficam calados, ou desviam a conversa, fingindo que não sabem de quem estou a falar. Acaricio a lã macia do animal, encostando a cabeça ao tronco.- Quim. Anda lá, a missa em honra da alma da Alzira deve estar quase a começar...
- Sim, Tio... Eu vou já, podes ir andando.
Ele arrasta-se, cansado e velho, pelo campo, seguido de perto por Pluto. Observo a Lua, fraca, apagada pelo Sol que se ergue alto naquela tarde de Segunda-Feira. Arregaço uma das mangas da camisa negra, que deslizara até ao meu pulso. O antigo caminho de terra batida que leva à Igreja serpenteia à minha frente, e percorro-o, vagarosamente.
A cerimónia havia começado minutos antes. Passou, lentamente, tal como o meu estado de espírito. Finalmente, o Padre Joaquim começou a citar a sua homilia.
- Hoje estamos aqui reunidos para recordar alguém. Alguém cujo nome era conhecido por muitos, amado por todos. Alzira, carinhosamente tratada entre a sua família - ouve-se um burburinho e oiço alguém comentar que tinha sido a família que a matara. - sempre foi uma mulher de carácter forte, justo e honesto.
Justo. Justo? É justo o que ela me está a fazer passar? Não, Quim, não a culpes... Ela morreu por tua culpa.
- Caminhei muitas vezes lado a lado com ela, discutindo sobre como decorar a igreja para as festas, como melhorar a vida aqui na aldeia. Ela sempre se mostrou disponível para tudo isso. Mas há um ano atrás, mesmo em frente a esta mesma Igreja, o seu coração frágil de anciã bateu pela última vez. Ela era uma amiga, um irmã, uma... - O Padre hesita, olhando para mim, fitando-me com os seus olhos expressivos e húmidos. - uma avó. Palavras duras saíram da sua boca. Palavras que ela certamente se arrepende de ter dito, palavras que poderiam ter destruído mais uma vida, para além da dela...
O meu coração contorce-se, o meu estômago dá um nó. Não aguento e sinto a água escorrer-me pelos olhos. Giro sobre os meus calcanhares, saí a correr da Igreja, chorando. Corro, sem destino. Corro para me escapar. Salto o muro. A porta emoldurada pela parede amarela barra-me o caminho, mas pontapeio-a com todas as minhas forças, que já são poucas. Ela cede, dando-me passagem. Atravesso a cozinha, subo as escadas e entro de rompante no quarto dele. No quarto agora vazio de Jaime. É a primeira vez em doze meses que volto a entrar naquela casa assombrada pela alegria outrora ali vivida. Ajoelho-me no chão, soluçando, gemendo.
- Porque te foste embora?! Porque me abandonaste quando precisava de ti! Todos me abandonaram! Deus, a minha Avó, Jaime! Que mal fiz eu! - Berro. - Que mal fiz eu...?
A minha voz morre-me na garganta e encolho-me, chorando. Nunca me disseram como sobrevivi à queda. Apenas me disseram que foi a sorte. Mas eu lembro-me da voz. A voz dele chamar pelo meu nome. É única coisa de que me lembro. Jaime a chamar por mim. Fecho os olhos. Tudo o que posso ver são so seus olhos verdes, alegres. Jaime a correr em frente a Laika, a sua cadela Serra-da-Estrela. Vejo-o sentado na cama, à minha frente, contando-me como eram as coisas em Lisboa. Recordo-me de lhe ensinar onde estavam as constelações, nas noites quentes do Verão que ele cá passara. Sinto de novo o seu corpo quente sob o meu, naquela noite em que entrei pela sua janela, trepando pela árvore perto da Casa Amarela. A voz dele, grave, sábia, alegre, enche-me os ouvidos. Mas é abafada pelos gritos da minha avó.
Larga-me, Larga-me! Ai, que me morro aqui!
O seu corpo inerte, caído na poeira em frente à igreja. Encolho-me ainda mais, deixando-me cair no chão, em posição fetal. A minha testa toca os meus joelhos que tremem. Estou sem apoio, sem ninguém. A solidão avassaladora invade-me o corpo, toma-me a alma, corrói-me o ser.
Sinto um patinhar tímido perto de mim. A língua húmida de Pluto lambe-me a orelha, fazendo-me cócegas. Soluço, abraçando-me ao seu pescoço enquanto ele gane. Os seus olhos tristes e castanhos observam-me, desesperados por me ajudar.
- Está tudo bem, rapaz, eu estou bem. Não há problema. Vai ter com o Tio. Ele precisa de ajuda com as ovelhas. Eu fico bem. Vai.
Ele caminha para a porta do quarto, hesitando. Vira-se para trás, ladrando-me gentilmente. Aceno-lhe com a cabeça e ele saí, de orelhas em baixo, cabeça caída e cauda entre as pernas. Espero até ter a certeza que ele se foi embora. Não quero que o único amigo que me resta me veja assim vulnerável. Uma lágrima escorre-me pela face. Volto a deitar-me, enroscado em mim mesmo. Nem mesmo a dor da foice a dilacerar a minha pele quando ainda era novo é mais forte que esta dor no meu peito. Já não tenho forças para chorar. As minhas pálpebras pesam-me. Adormeço. Os sonhos depressa me atormentam.
Corro. Estou quase a chegar à Igreja. Mas a avó já está caída no chão. Os seus olhos abrem-se, a sua boca abre e fecha, como um peixe fora de água. A sua voz ecoa, gritando-me para eu a soltar, insultando-me, por a ter morto. "Acabaste com a minha vida, seu bastardo, és uma maldição. És o Demónio, estás possuído. Naquela casa caminha a Besta como caminha Deus no céu!", berra, enchendo a minha cabeça que parece querer explodir. Choro. Grito pelo primeiro nome que me ocorre. "Jaime! Jaaaaaaaime! Voltaaaa!!" mas ele afasta-se cada vez mais sem olhar para trás. Laika caminha ao seu lado, puxando Pluto consigo. O Tio afasta-se também, levando consigo o meu cordeiro. Carrega-o às costas como uma mercadoria. Olha para mim, sorrindo sadicamente. "Matas-te a minha irmã, agora sofre as consequências!". Volto a gritar pelo seu nome, chorando. "Jaime! Jaime! Por favor! Jaime!". Ele surge ao meu lado, tocando-me no ombro. Chama pelo meu nome. "Meu Deus, Quim! Joaquim!"
- Amor, acorda!
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