A Casa Amarela Perto do Bosque
Domingo. Típico dia da missa. A Avó acredita em Deus. Diz que ele é bom para quem se porta bem, e castiga quem se porta mal. Faz-me lembrar o Pai-Natal. Quando disse isso à avó, ela benzeu-se e disse que o Pai-Natal não existe, mas Deus sim. Eu nunca vi o Pai-Natal. Nem nunca vi Deus. Mas já vi e ainda vejo a minha avó, por isso acredito nela e no que ela diz. A missa passa sempre depressa para mim. Gosto de ouvir o Padre Joaquim falar. Acho que isso é porque ele tem o mesmo nome que eu? A minha avó menciona sempre que eu podia ir para padre. Mas eu não quero ficar todos os dias em pé, em frente à aldeia. O Padre Joaquim já se mete comigo por causa disso, mas eu mantenho-me firme nas minhas ideias. No entanto, hoje é um Domingo diferente. Há um burburinho no ar. É mexerico, pois com certeza. A avó e as amigas adoram falar sobre a vida das outras pessoas. Vejo a Dona Armanda da Mercearia, o Zé da Serralharia, a Dona Lurdes da loja de roupa, o Sr. Bicas do café da aldeia, o Sr. Armando da loja das sementes, a Dona Alberta, a vizinha da rua de cima e a neta dela, a Clarinha, e os pais dela, a senhora Joana e o Sr. Cândido. Conheço todas as caras, vou vendo, sorrindo em cumprimento. e então vejo-o, lá ao fundo. Deve ser dele que estão todos a falar. É um rapaz novinho, talvez quinze anos como eu? De semblante sério, a meditar, olha fixamente para o crucifixo no altar, com os seus olhos verdes. As suas mãos estão entrelaçadas, apertando-se mutuamente. Os seus cabelos castanhos são lisos e um pouco despenteados. Tem vestida uma camisola fina, com um decote em "V" azul, e umas calças de ganga brancas. Por momentos, os seus olhos desviam-se do crucifixo e cruzam-se com os meus, apesar de não virar a cara para mim. Eu desvio o meu olhar e tento concentrar-me nas palavras do Padre Joaquim.
Algumas horas depois da missa, não consigo deixar de perguntar à minha avó quem é aquele rapaz, possível companheiro de brincadeiras. Ela não me responde.
- Avó, porque é que eu não o conheço? - Interrogo.
- Porque ele é o rapaz que vive na casa amarela perto do bosque... E não te quero a andar com ele, que é má companhia.
- Isso é o que as gentes da aldeia dizem! - Riposto - Não quer dizer que os mexericos sejam verdade!
- Mais respeito que é bonito, meu menino! - Exclama a avó, trancando-me a boca com o olhar. - Quero-te longe dele, daquela casa, daqueles... Daquela família! Ouve o que te digo, filho, naquela casa caminha o Demónio como caminha Deus no céu!
Estremeço de medo, e levo uma garfada de arroz à boca, engolindo em seco. Pluto, debaixo da mesa, também gane, assustado. Finalmente, vejo-me de novo na segurança do quintal das traseiras da casa da avó. Hoje decido ser um mago, que combate monstros. Pluto ladra em jeito de aprovação. imagino-me num campo de batalha enevoado pelo fumo de fogos distantes. Caminho pela terra vermelha de sangue. Um monstro retorcido tenta atingir-me, mas lanço-lhe uma bola de magia que o faz desvanecer em pleno ar. Olho ao longe e vejo o bosque a arder, a Casa Amarela em ruínas. A fantasia desvanece-se e fico a observar aquela casa. Lá ao longe, nada mais parece do que um rectângulo da cor do Sol. Olho em volta. A avó deve estar naquele momento a ver televisão e a fazer croché. Observo Pluto.
- Também podes vir. Mas quieto e calado. Não quero nem um ganido enquanto eu não disser!
Ele sentou-se, com a língua de fora, obedecendo e não fazendo nenhum som. Caminhamos então pela estrada de terra batida até ao cimo da colina onde se encontrava a casa. encostamo-nos ao muro, em silêncio ouvindo. Está uma mangueira ligada e posso ouvir a água a bater em algo, talvez um carro.
- Freed! - Chama uma voz masculina. - Onde é que puseste o detergente para o carro?!
- Acho que está no barracão das ferramentas! - Responde outro homem.
Estou prestes a dar um passo quando as orelhas de Pluto se colam ao seu pescoço. Algo não está certo. Das traseiras da casa, sai um Serra-da-Estrela enorme, do tamanho do meu companheiro. Também esse cão tem as orelhas para baixo, coladas ao pescoço, a cauda erguida e os dentes arreganhados. Pluto rosna e eu seguro-lhe a coleira.
- Pluto, quieto. - Murmuro.
O outro cão, de pêlos castanhos rosna em protesto e ladra. A mangueira desliga-se e ouço uma porta de madeira ser aberta. O outro cão ladra de novo e Pluto responde da mesma forma.
- Pluto, quieto! Senta! - Ordeno-lhe.
Ele não me obedece.
- Pluto, quieto, senta! Menino mau! Senta, ou ficas sem biscoitos durante uma semana! - ameaço, com sucesso.
Apesar de se sentar, continua de dentes arreganhados e ladra ao outro cão. O animal começa a trotar na nossa direcção, e o o meu aperto na coleira de Pluto começou a afrouxar.
- Laika, quieta! - Grita uma voz grave por trás de mim.
O cão, que afinal é uma Cadela, trava bruscamente, gane e senta-se. Eu giro sobre os meus calcanhares. Um homem loiro, de olhos azuis, observa-nos. Olha para Pluto de forma cuidadosa.
- oh...Mm... olá...? - Cumprimento.
- Olá...
- Eu sou o Quim. Moro naquela casa.- Apresento-me, apontando para a casa da avó, que se via lá ao longe.
Um outro homem de cabelos castanhos e olhos verdes apareceu vindo da casa.
- Pareceu-me ouvir-te gritar para a Laika, o que é que... Ora, ora, o que temos aqui?! - Exclama o recém chegado, aproximando-se de Pluto.
Eu abro a boca, para o avisar para ter cuidado. Mas Pluto já tem as orelhas erguidas no ar e a cauda a abanar, à espera de brincadeira. O homem começa a fazer-lhe festas, fazendo-o rebolar-se no chão de contentamento. Daí a pouco Laika junta-se, ciumenta, à brincadeira.
- Olá, Quim. Eu sou o Carlos e este é o Frederico. - Diz ele, dando-me um aperto de mão. - é bom saber que há aqui alguém interessado em conhecer-nos na zona...
- Pois... A avó e as amigas dela adoram mexericos... - Digo, revirando os olhos e provocando-lhe uma risada.
- Ah, e este é o Jaime, o nosso filho. - Apresenta ele, estendendo a mão em direcção ao rapaz que eu vira na missa.
- O vosso... O vosso filho? - Pergunto, surpreso.
- Sim, eu e o Carlos somos casados. - Informa Frederico.
Carlos olha para mim, testando-me, mas continua a brincar com os cães.
- Sim... Tu... - Frederico parece ficar atrapalhado.
- Um homem casa com uma mulher... - Comento.
- Mas pode casar com outro homem se o amar. - Argumenta Jaime, encolhendo os ombros.
A sua voz é também grave, mas não tanto como a do pai. Como a dos pais. Sinto-me confuso. Eles percebem.
- Queres entrar, para te explicarmos melhor? - Convida Carlos. - Acabei de fazer biscoitos.
Sinto-me tentado, mas relembro-me das palavras da avó.
- A Avó Alzira disse que na vossa casa caminhava o Demónio como caminha Deus no céu... - Solto, tapando a boca com as mãos de seguida.
Eles sorriem tristemente.
- Não te preocupes, Quim, não te fazemos mal. - Garante Carlos, mostrando-me um terço que tem ao pescoço. - E só entras se quiseres.
Olho para Pluto. Sempre confiei nele para julgar o carácter das pessoas. Opto por segui-los para a Casa Amarela.
1 comentário(s):
E tão queridooo
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