quinta-feira, 21 de abril de 2011

O Rapaz da Casa Amarela - Livro II - Capítulo 3

Uma Questão de Perspectiva
Acordo com Laika a ladrar. Relembro a noite anterior e olho surpreendido para a cama vazia ao meu lado. Na almofada está um papel, escrito com uma caligrafia cuidada da primária.

É a primeira vez em muito tempo que tenho de escrever algo que não seja uma lista das compras... Mas tive de sair antes de acordares, porque a Avó precisa da minha ajuda pela manhã cedo para dar de comer aos animais.
P.S. És ainda mais belo quando dormes...

Um sorriso desenha-se na minha cara, olhando para o tecto. Apercebo-me que ainda estou nu e corro para a cómoda, escolhendo algumas roupas. Tomo um duche rápido, visto-me e disparo para a cozinha, tomando o pequeno-almoço rapidamente.
- Hei, hei, a que se deve tanta felicidade? - Pergunta o pai Fred, ainda sonolento.
- O Quim passou cá a noite. - Diz Carlos, entrando em casa com uma pasta de médico preta.
- Não, não passou! - Minto.
- Não era uma pergunta, filho. - Comenta ele, sorrindo. - Hoje de manhã ia sair mais cedo para ir tratar de uma égua que estava a ter um parto. Quando entrei na casa de banho, deparei-me com um pigmeu despido lá dentro...
- Oh, foi por isso que praguejas-te hoje de manhã? - Pergunta Fred incrédulo.
- Ele estava nu na casa de banho? - Interrogo, boquiaberto.
- Sim, ele estava a tentar tomar banho sem nos acordar... Contou-me o que se passou ontem à noite. - Informa, apoiando-se no balcão e aproximando a sua cara imenso da minha, quase tocando com o seu nariz no meu.
Ele faz sempre isso quando quer que eu não minta. Eu sempre tive dificuldades em mentir às pessoas cara a cara, e quanto mais próximas elas estão de mim, mais difícil me é ocultar a verdade.
- A sério... O que é que ele te disse...? - Inquiro.
- Não me disse nada. Eu vi tudo... - Afirma.
Por uma fracção de segundos, os seus olhos apontam para a minha cintura, e voltam a fitar os meus. A mensagem que ele queria dar-me atingiu-me como uma pancada.
- Oh, credo! Ele estava... tu viste... Urgh! Para onde estavas a olhar pai?!
- Sim...
- Calma lá, o que é que me está a escapar?! - Comenta o pai Fred, fingindo-se resignado. - Tu andas a ver meninos nus?
- Não pude evitar! Ele estava à minha frente! - Defende-se Carlos, revirando os olhos. - Enfim... Ele lá tomou o banho, vestiu-se e pediu-me papel e caneta.
Eu olho para a minha tigela com cereais e leite, corando.
- Não há problema, Jaime, nós só estamos feliz por teres encontrado alguém. - Afirma Fred.
Mas detecto reticências na sua voz. Por momentos, a possibilidade de eles me estarem a esconder algo cruzou-me a mente. Afastei esses pensamentos, comendo mais uma colher de cereais.
Termino o pequeno almoço e caminho para o jardim. Começo a brincar com Laika, pensando se deverei ou não falar com Quim. Decido que sim, que devo falar com ele e dirijo-me a casa da Dona Alzira.

A casa é pitoresca, feita de pedra. Umas escadas exteriores dão acesso à zona de habitação. Por baixo, está uma garagem, fechada. Olho em volta. Na casa vizinha um cão observa-me curioso. Oiço uma voz lá em cima.
- Sim, Armanda, mas já sabe como são os rapazes dos nossos tempos. Vão-se e nunca mais voltam. - Comentava uma voz viva, mas marcada pelo tempo.
- Tudo bem, Alzira, mas isso não significa que não me deixe o espírito agitado ao saber que o meu próprio filho me está a abandonar... Por falar nisso, onde anda o Quimzinho? - Respondeu uma outra voz, um pouco mais jovem.
- Foi com o Araújo... - Reponde Alzira, abrindo a porta, tornando a conversa mais audível. - Foram levar as ovelhas a pastar.
Encosto-me à parede da casa, ouvindo as senhoras descer as escadas.
- O seu irmão é que lhe ensina muita coisa... Tenho pena que a escola tenha fechado...
- Sim, mas o Araújo também já não teria saúde para estar a cuidar de rapazinhos. Aliás, nem de ovelhas, por isso é que o Quim o vai ajudar depois de me ajudar a orientar as coisas com animais aqui em casa.
- É um amor de pessoa, o seu neto. - Elogia D. Armanda. - Pena é que ande com más companhias...
- Más companhias? - Interroga Alzira. - Oh diácho, mas o que é que está para aí a dizer, mulher?
- Então não sabe? A Ti Carolina, a que mora lá para os lados da fonte, sabe? Ela diz que viu o seu menino, já várias vezes, a ir àquela casa.
- Impossível. - Afirma a avó de Quim. - Ele sempre foi brincar para os bosques quando tem tempo livre. Mas não vai à Casa Amarela que não deixo. Eu já lhe disse, e digo a todos: Naquela casa, caminha o demónio como caminha Deus no céu! Ouve o que te digo.
Sinto a raiva inundar-me o peito.
- Cristo! - Exclama Armanda, benzendo-se. - Mas lá nisso até tem...
Ela bloqueia as suas palavras quando me vê, já ao fundo das escadas. eu pusera-me em frente ao pequeno portão de metal antigo, olhando para as duas senhoras. Engulo as palavras ácidas que quero cuspir. Dizê-las só apoiaria as teorias das mexeriqueiras.
- Bons dias. - Cumprimento, fingindo não ter estado a ouvir a conversa. - O Joaquim está?
elas entre-olham-se. Um "eu bem disse" flutua no ar, sem que ninguém o pronuncie. Mas algo acontece que me surpreende. Alzira desce as escadas, caminhando na minha direcção. É uma mulher baixinha, magra e enrrugada. Mas as suas mãos têm um aperto forte. Ela puxa-me violentamente para longe da casa dela.
- Tu aqui não me pões os pés, coisa profana! - Exclama. - Podes ir à missa pelas aparências, mas sei bem que és filho do demónio.
- Com todo o respeito, Dona Alzira, mas o que a faz pensar isso? - Interrogo.
- Homens são feitos para ter mulheres! Não são feitos para andar a enrabarem-se uns aos outros!
Sinto o meu queixo cair, como se tivesse recebido uma chapada.
- Eu tenho muito respeito pela senhora, porque conheço o seu neto e foi a senhora que o educou, mas não admito que diga essas coisas dos meus pais! - Exclamo. - Fique sabendo que eles são pessoas muito melhores que você, porque não andam por aí a espalhar mexericos e insultos sobre pessoas que nem conhece! Tenha o resto de um bom dia!
Caminho com passo determinado, deixando para trás a aldeia, dirigindo-me de novo a casa. Na minha cabeça ecoavam as palavras daquela mulher que perder todo o respeito que tinha por ela. Gritei, berrei a plenos pulmões, frustrado com a malícia com que os homens eram capazes de se referir aos outros. em nome de Deus?! Mas que Deus apoiaria esses mal-dizeres? Não foi o próprio filho de Deus que disse que nos devemos amar uns aos outros como Ele nos amou? Onde está esse Deus presente nestas pessoas que caminham a terra?!

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