Carlos, Frederico e Jaime
O interior da casa é agradável e limpo. Olho à minha volta ainda medroso. Na minha mente ecoa apenas uma pergunta.
- Porque é que a Avó diz que o Demónio caminha nesta casa? - Interrogo.
Jaime estremeceu, mas Carlos e Frederico pareciam habituados.
- Porque para a tua avó, o que está escrito na bíblia é que os gays são fruto do pecado e do Diabo. - Comenta Frederico.
- Gays? - Pergunto. - O Ti Araújo nunca me ensinou essa palavra...
- O termo mais correto seria homossexuais. - Diz Carlos.
Sinto a cara ficar vermelha, e paro, envergonhado, como se algo de mau tivesse sido dito.
- Que se passa? - Interpela Frederico.
- A avó diz que não se pode falar em... bom... naquela última parte da palavra homo...
- Oh, em sex... - começou ele.
- Sim! Isso. - Cortou Carlos. - Percebo, a tua família é conservadora. Mas não há mal em falar nisso. Fiquemos pela palavra gay, que é mais usada. Um homem gay é um homem que gosta de outros homens, como outro homem gostaria de mulheres.
- Como vocês...?
- Exacto. - Confirmou Frederico, envolvendo a cintura de Carlos com um braço. - Mas fora isso, somos como todas as outras pessoas. O Carlos, por exemplo é veterinário e eu sou arquiteto.
Eu observo-os curioso, sentando-me à mesa. A casa por dentro é tal e qual as casa decoradas de forma moderna que eu vejo nos filmes americanos que passam na televisão. Frederico começa a pôr os biscoitos num prato enquanto Jaime põe os guardanapos e Carlos vai buscar alguns copos. É engraçado vê-los a trabalhar em conjunto. Um verdadeiro esforço de equipa, digno de uma brincadeira de piratas ou de aeronaves.
- Então, Quim, conta-nos mais sobre ti. - Incentiva Frederico.
- Ora, tenho quinze anos, o Pluto é o meu melhor amigo. A Avó Alzira é quem trata de mim e o ti Araújo ensina-me muitas coisas.
- Quinze? - Interroga Jaime, surpreendido. - Pareces mais novo...
- Filho! - Exclamam os dois homens em uníssono.
- Que foi, ele fala como uma criança, age como uma! - Comenta, cruzando os braços.
- Mas eu gosto de ser criança! - Defendo. - Já dizia Eça de Queiroz que "as crianças são os únicos seres divinos que a nossa pobre humanidade conhece. E, para concebermos uma ideia das coisas do Céu, só temos realmente as criancinhas..."!
Cruzo os braços à espera que Jaime responda, mas tudo o que ele consegue fazer é abrir e fechar a boca sem produzir nenhum som. Faz lembrar o meu peixinho dourado a navegar no seu aquário todo o dia, lá no meu quarto. Frederico e Carlos entreolham-se, sorrindo.
- Então, foi o teu Tio Araújo que te falou do Eça de Queiroz? - Pergunta Frederico, lançando um olhar a Jaime que transpira a "não tens mais que aquilo que pediste".
- Sim. Disse-me que ele foi um dos grandes escritores portugueses, como o Fernando Pessoa, o Luís Vaz de Camões... O Ti Araújo ensina-me de tudo um pouco. Foi ele que me falou dos reis, rainhas, princesas, dragões, cavaleiros, piratas, corsários, do Holandês Voador, dos insectos, dos animais, das aves, das montanhas, dos rios, dos mares...
- Uau! Tanta coisa! - Diz Jaime, sarcástico.
- Já percebi que não gostas de mim. - Respondo, encolhendo os ombros.
Jaime retira-se, subindo para o segundo andar. Frederico e Carlos pedem desculpa pelo comportamento dele.
- É normal que ele se sinta mal se foi para longe dos amigos... - Comento.
- Pois... Oh, como é que tu soubeste disso? - Pergunta Carlos, surpreso.
- Bom, vocês têm um sotaque totalmente alfacinha. E eu conheço a aldeia de uma ponta à outra, como a palma da minha mão, e nunca vos tinha visto cá, por isso calculei que tivessem para cá vindo há pouco tempo...
- És observador... - Elogia Frederico.
- Vou falar com ele. Se calhar precisa de uma migo... Posso? - Peço.
Eles dão-me permissão para ir ter com Jaime. Indicam-me o caminho para a porta do quarto, que está trancada. Ao lado, vejo uma porta aberta que dá para um outro quarto. Agora imagino-me como um explorador como o Indiana Jones dos filmes americanos que passam na TV. Ajeito o meu chapéu imaginário. Há minha volta a casa começa a tornar-se uma ruína, dominada por heras e trepadeiras. Sorrio sensualmente e caminho em direcção à janela. Abro a armação que resta de madeira e passo para o lado de fora, mantendo-me encostado às paredes. Lá em baixo, o chão começa a ficar mais longe. Já não estou no segundo andar de uma casa, mas sim no topo de um torre antiga. O meu pé escorrega, deixando cair algumas pedras, que embatem nas rochas lá em baixo, relembrando-me que é morte certa se as seguir. Mais um pouco, mais um pouco e finalmente chego à janela que quero. E a Casa Amarela deixa de ser a ruína de um forte romano para voltar a ser a Casa Amarela. Bato levemente no vidro. Jaime abre a janela, mas as portadas abrem para fora, empurrando-me. Seguro-me à armação de madeira robusta e fico pendurado.
- Oh deuses! És doido! És louco! - Berra Jaime.
- A porta estava trancada. - Informo sorrindo. - Não te mexas.
Ponho os pés na zona saliente perto do vidro. Sim, dá-me apoio suficiente. Solto primeiro uma mão e seguro-me ao lado da portada. Passo um pé para o outro lado. Agora estou de frente para o interior. Impulsiono a portada para se fechar, e atiro-me para dentro do quarto no último segundo antes de esta bater com estrondo na moldura da janela. Aterro em cima de Jaime. ele levanta-se de um salto, berrando.
- És doido?! Podias-te ter morto! - As lágrimas começam a inundar-lhe os olhos.
- Mas estava tudo sobre controlo! - Exclamo sorrindo.
- Tu és completamente louco! Deves ter um parafuso a menos só pode! Se tu te matasses eu nem sei o que...!
As lágrimas começam transbordar-lhe pelos olhos, aproximo-me rapidamente e envolvo-o com os meus braços.
- Eu estou bem. - Sussurro, por entre os seus cabelos suaves. - Eu estou bem. Não chores. Eu estou bem.
Ele ainda fica mais uns minutos assim, agarrado a mim a chorar. Finalmente acalma-se.
- Ugh, sujei-te a camisola toda... - Comenta.
Dirigi-se a uma cómoda de madeira branca e entrega-me uma t-shirt com um decoto em "v" que me chegaria facilmente até meio do peito. Eu hesito.
- Não queres mudar-te? Não tem problema eu empresto-te a camisola, desde que não voltes a fazer uma loucura daquelas... - Diz, passando a mão pela cara para limpar os restos de lágrimas.
- Não é isso.. só não me sinto bem em despir-me em frente a outras pessoas... - Comento.
- Oh, por favor, tiveste coragem de te pendurar ali na janela e agora tens vergonha de tirar a camisola? - Interroga incrédulo.
Eu dispo a minha camisola. Inclino-me para apanhar a t-shirt que ele pousara na cama. Ouvi-o aspirar o ar de surpresa. Não! Ele viu as minhas costas!
- Meu deus... o que é que... tu tens uma...
- Sim, uma cicatriz. - Respondo, confirmando que o traço vertical irregular que ele vê desde o meu ombro esquerdo até à base das minhas costas é a marca de uma ferida antiga. - Quando eu era mais novo fui esconder-me para o meio do trigo do meu avô... Era altura da ceifa e só me apercebi dos homens tarde demais. Um deles, ao ceifar o trigo, apanhou-me as costas com a foice... Cheguei ao hospital a tempo, mas quase morri pelo caminho.
Desta vez, o meu tom de voz era mais sério e grave, quase como o de um adulto. Era raro as pessoas verem aquela minha faceta.
- Sou aquilo a que tu chamas criança, porque quero aproveitar ao máximo a vida que Deus decidiu não me tirar naquele momento. - Remato, vestindo a t-shirt.
3 comentário(s):
Amei a dica dele. estou a amar esta história, é linda.
:) ainda bem que gostas :P Vou publicar novos capítulos em breve ;P
meldels, tantas histórias para ler em tão pouco tempo! XD
vou tentar ler todas, haha mas não prometo nada.
até agora estou a gostar desta, gostei da forma como a revelação do acidente dele me apanhou de surpresa. pensei que ele fosse um lobisomem ou coise (harry potter much? XD)
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